Paternidade que protege

‘Epopeia’ na argila

Jacyntho Lins Brandão lança tradução comentada da saga do rei Gilgámesh, texto escrito em acádio no século 13 a.C.

“Ele que o abismo viu” é o primeiro verso – e, consequentemente, o nome – de um dos mais antigos registros literários de que se tem conhecimento: a “epopeia” de Gilgámesh. Escrito originalmente no século 13 a.C. sobre pequenas tábuas de argila e em acádio (a mais antiga língua semítica registrada), o poema conta a história de um rei que, em tudo dado aos excessos, parte em uma busca heroica – e malfadada – pela imortalidade, enfrentando os deuses.

Os leitores brasileiros contam com uma versão da obra traduzida da mais nova edição crítica do texto acádio para o nosso português. Com uma bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq, Jacyntho Lins Brandão, professor da Faculdade de Letras, pôde se dedicar durante os últimos quatro anos na tradução do poema, intercalando o trabalho com as demais atividades de sua rotina didática e intelectual. Ele que o abismo viu: Epopeia de Gilgámesh foi publicado pela Autêntica Editora e já está disponível nas livrarias.

Descobertas

Em 1985, o pesquisador Ordep José Trindade Serra já havia realizado uma primeira tradução do poema. “É um trabalho de excelente qualidade e atualizado com relação à época em que foi escrito”, elogia Jacyntho. No entanto, face às restrições da época, a versão era “um apanhado de textos distintos muitíssimo fragmentados”, capaz apenas “de apresentar um fio narrativo mínimo”.

Descobertas recentes de novas tabuinhas e fragmentos motivaram o projeto de uma edição crítica mais completa. “A tabuinha cinco, por exemplo, só foi encontrada nesta década”, conta Jacyntho, lembrando que a transcrição e a edição dela são ainda mais recentes, datando de 2014. A tradução do professor pôde contemplar todas essas novas descobertas. “Na verdade, fui pego pela descoberta dessa quinta tabuinha no meio de meu processo de tradução. Tive de voltar a essa parte e fazer tudo de novo”, diverte-se Jacyntho.

Reprodução

Reprodução

“A tradução que ofereço pretende-se bastante próxima do original babilônico, observando suas convenções poéticas”, explica. “A poesia acádia, como a de outras línguas semíticas antigas, não tem como base algum esquema métrico fixo, mas constrói um ritmo ­baseado em unidades sintáticas, um verso comportando, em geral, duas dessas unidades. Além disso, pode-se dizer que, dentre outros recursos poéticos, os mais relevantes são os de natureza paralelística, que envolvem expressões, versos, trechos e mesmo falas e cenas inteiras, o que também marca, no seu nível, o ritmo do texto”, escreve o professor em um artigo sobre a tradução.

Uma das novidades do livro traduzido por Jacyntho é uma indicação de autoria, o que não existia em nenhuma versão anterior do poema: o texto é atribuído a Sin-léqi-unnínni, um escriba, que, por volta dos ­séculos 13 ou 12 a.C., teria remanejado relatos anteriores (que remontam a uma tradição poética que pode ter-se iniciado há quatro mil anos), compilando-os na sua versão.

A ordem dos fatores

A arqueologia material de Ele que o abismo viu é relativamente recente: se a última tabuinha descoberta – das 12 que compõem o poema – só foi encontrada nesta década, os primeiros achados relativos ao texto ocorreram apenas nos anos 70 do século 19. “Antes disso, não tínhamos a mínima ideia de que essa história existisse”, comenta Jacyntho. O dado é particularmente curioso na medida em que, no poema, podem ser encontrados vários dos mitos – a criação do homem a partir da argila, a ideia de viagem como conhecimento, a planta da juventude, o dilúvio e a arca, o barqueiro da morte – que vão se tornar conhecidos primeiramente por meio de tradições literárias, como a grega e a cristã, posteriores ao poema.

Jacyntho resume as ideias que conduzem a história. “Após [o fracasso de] sua jornada de conhecimento, Gilgámesh termina retornando ao seu reino, onde tudo começou. Nesse sentido, uma das ideias presentes na obra é a de que a vida do homem se realiza na cidade: de alguma forma, o poema fala sobre a civilização, sua importância”, diz o professor. “Na medida em que Gilgámesh não alcança a pretendida imortalidade, a história parece tratar, também, da importância de se aproveitar a vida. É como se dissesse: a vida do homem é essa aí”, conclui.

No livro, além de denso ensaio introdutório, o professor da Faculdade de Letras oferece uma enorme quantidade de comentários para cada capítulo – em média, cada página de poema recebe, ao fim do volume, duas de comentários. Em razão dessa particularidade, o tradutor optou por classificar a obra como “tradução comentada”, ou seja, uma tradução “que termina por deixar expostas as dificuldades enfrentadas pelo tradutor no que diz respeito à decifração do texto e às opções assumidas ao vertê-lo, com base em critérios de relevância”.

[Matéria publicada no Portal UFMG em 8/11/2017]

Livro: Ele que o abismo viu: Epopeia de Gilgámesh

Autor: Sin-léqi-unnínni

Autêntica Editora - 336 páginas / R$ 59,80

Ewerton Martins Ribeiro