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Que justiça é essa?

Ainda está preso em muitas gargantas o nó que surgiu após a notícia da trágica morte do professor Luiz Carlos Cancellier, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Se em um primeiro momento o choque tomou conta de todos, principalmente daqueles que dedicam suas vidas ao ensino público superior no Brasil, hoje a sensação é de náusea e profunda indignação. 

Cancellier foi vítima de um Estado que beira a exceção. Não de forma escancarada, como no período em que os militares usurparam a nação. Pior, de maneira enrustida, ardilosa. Estamos reféns de uma ditadura policialesca que se entranhou nas esferas do poder e tem dado as cartas, controlado o jogo, sem o mínimo respeito ao ordenamento jurídico, principalmente às garantias fundamentais previstas na Constituição. 

Cancellier foi preso sem ser ouvido. Não bastassem todas as ilegalidades que envolveram a investigação, o reitor foi barbaramente humilhado. Primeiro, no ato de sua prisão. Depois, quando o proibiram de entrar na Universidade. Como bem lembrou o jornalista Elio Gaspari em artigo na Folha de S. Paulo, isso não ocorreu sequer nos piores momentos da ditadura militar. 

Mestre e doutor em Direito pela própria UFSC, onde também se graduou, Cancellier tinha fé irrestrita na ciência jurídica. Em uma antiga entrevista, disse que “sem o Direito, prevalece a força, a barbárie”. Acabou vítima de seu próprio vaticínio. Acabou violado naquilo que passou boa parte de sua vida ensinando e defendendo: a integridade e a dignidade da pessoa humana e o devido processo legal.  

Em um discurso emocionado feito durante o velório do reitor, o ex-senador Nelson Wedekin fez as perguntas que todos nós gostaríamos de fazer. “Que autoridades são essas que, ao invés de nos proteger, causam medo e terror? Quem são eles, assim destituídos de humanidade e razão? É preciso agir com a mão assim pesada, com tal crueldade, com tal virulência e desumanidade?”, indagou, para depois concluir: “Não se passa o país a limpo assim”. 

Esse sectarismo que impera nas esferas do poder atingiu níveis tão surreais que não é exagero comparar o que se passa no Brasil com o macarthismo norte-americano. Se, na década de 1950, as autoridades dos EUA viam comunistas em quaisquer sombras, a cruzada anticorrupção tem servido de escudo para que biografias sejam destruídas e permitido que todo tipo de desmando seja desculpado. 

A morte do reitor não foi um caso isolado. Vivemos em um país em que delatores são aplaudidos e incensados, a despeito da veracidade de suas inconfidências. Achaques e chantagens têm mais valor que a investigação séria e acurada. Para piorar, os vazamentos propositais dos depoimentos, antes mesmo de qualquer comprovação, servem para jogar no lixo o sagrado princípio da presunção da inocência. 

Toda a operação que culminou na prisão de Cancellier foi feita visando ao máximo possível de repercussão na mídia. Essa ânsia por holofotes, manchetes e, mais recentemente, por curtidas e likes nas redes sociais é sinal claro de que muitas decisões têm sido fortemente influenciadas pelo ego de quem as toma. Fosse Pompeu o general desse exército, diria que aparecer é preciso, cumprir a lei não é preciso. 

A santificação desses ditos defensores da lei – ou da moral, dos bons costumes e da tradicional família brasileira, se desejarem – beira a insanidade. Insanidade de quem os elevou a tal patamar e deles próprios que, contagiados pela bajulação, sentem-se cada vez mais intocáveis. Esse nível de sebastianismo se transformou em uma verdadeira fábrica de déspotas, de tiranos, instalados em todos os círculos do poder, do mais baixo ao mais alto. 

O resultado disso tudo é que estamos diante de um país com instituições em frangalhos. Em quem confiar? A quem recorrer? Se quem deveria se pautar pela proteção dos direitos e garantias dos cidadãos brasileiros rasga os princípios legais na hora de agir, estamos totalmente indefesos, à  mercê do jugo inclemente de quem dá mais valor ao espetáculo e a um falso moralismo que aos preceitos jurídicos que nos regem. 

O país está novamente adormecido em seu berço esplêndido. As ruas estão vazias. Entidades e grupos que se uniram para defender a pátria se esfacelaram. A sociedade se encolheu. Mas até quando? 

Já foram tantos os passos dados para trás que, daqui a pouco, não será mais possível retomar o processo de crescimento pelo qual passamos nas últimas décadas. O abismo já está tão fundo que, se os brasileiros não tomarem novamente as rédeas do país, não haverá como retornar. A mudança se faz urgente. 

Mudança que deve vir por meio da retomada da democracia em seu sentido mais literal. Somente uma reação vinda de todas as camadas da sociedade será capaz de impedir os retrocessos em voga e o agravamento de um quadro que já se descortina como caótico. Assim como inúmeras entidades se pronunciaram após a morte de Cancellier, é dever de todo brasileiro se posicionar

contrariamente a esse caminho tirano que ora se apresenta. Antes que seja tarde. Antes que nos esqueçamos do que aconteceu com Cancellier. Antes que nos esqueçamos de quem nós realmente somos. 

Cancellier vive! 

Maria do Rosário Alves de Oliveira, administradora aposentada da UFMG e presidente do Atens Sindicato Nacional