Cozinha ressignificada
Pesquisador da Face interpreta o movimento que ‘gourmetizou’ a culinária doméstica e transformou o homem em ‘chef’ desse universo
Historicamente localizada no fundo das casas, a cozinha costumava ser o lugar da dona de casa ou da cozinheira, configurando o exemplo mais inequívoco da segmentação por gênero existente nos lares. Nos últimos tempos, contudo, a cozinha doméstica vem sendo ressignificada e apropriada pelos homens, encorajados pelo discurso midiático do movimento gourmet, que transforma em espetáculo o ato de cozinhar.
“A cozinha sofisticada sempre existiu, mas tem sido priorizada de uns tempos para cá. Há, inclusive, projetos modernos de arquitetura que concebem esse espaço na parte da frente das casas”, comenta o pesquisador Felipe Gouvêa Pena, do Centro de Pós-graduação e Pesquisas em Administração (Cepead) da Face.
Segundo o pesquisador, é tendência entre as famílias de classe média e alta que o casal assuma o fogão nos fins de semana, com finalidade de recreação, por hobby e para reunir os amigos. “Cozinhar como rotina e obrigação diária fica a cargo das empregadas. Nos ‘bastidores’, elas preparam os ingredientes, mas são excluídas do ‘espetáculo’ dos patrões”, afirma.
No ano passado, Felipe Gouvêa defendeu a dissertação de mestrado Um território (re)apropriado? A dinâmica territorial da cozinha em meio a relações sociais de gênero e raça. A coleta de dados se deu por meio de entrevistas com patrões e patroas de classe média alta, empregadas e donas de casa, sobre temas como a emergência do homem na cozinha, o interesse pelo movimento gourmet, a predominância de mulheres negras na função de empregada doméstica e as relações de trabalho e dominação.
Os participantes também foram submetidos a um “teste de evocação de palavras”, em que eram instigados a associar palavras às expressões “a mulher na cozinha” e “o homem na cozinha”. Por fim, os entrevistados revelaram os sentimentos que emergiam quando visualizavam imagens de pessoas cozinhando – homens e mulheres, brancos e negros. “Por meio da Análise do Discurso, examinei o que estava explícito na fala dos entrevistados e descortinei também os argumentos silenciados, implícitos”, descreve Felipe Gouvêa.
Dona Benta e Tia Nastácia
De acordo com o pesquisador, os patrões inquiridos não permitiram a participação de suas próprias empregadas nas entrevistas, sob a alegação de que a provocação poderia “criar ideias em suas cabeças” ou fazê-las voltarem-se contra eles. “Essa atitude exemplifica a tentativa de preservação da relação de poder por meio do silêncio”, avalia.
Relatos como o de uma patroa que proibia a doméstica de usar suas panelas mais modernas e de uma senhora que subestimava as aspirações da empregada de construir uma cozinha sofisticada estão entre os mais representativos, segundo o pesquisador, do ideal de segregação social que ainda prevalece no imaginário dos patrões. “Na abordagem com as empregadas, observei um forte incômodo. Uma delas chegou a chorar quando estimulada a falar sobre questões de submissão e preconceito”, conta.
Os participantes também opinaram sobre o livro de receitas da Dona Benta, inspirado na personagem que é a patroa do Sítio do Picapau Amarelo. O embaraço reside no fato de que, na série de Monteiro Lobato, a cozinheira da família é a personagem negra Tia Nastácia – e não a Dona Benta. “A legitimidade da Dona Benta para batizar o livro de receitas e os interesses mercadológicos por trás dessa escolha foram problematizados, suscitando contestação em meio às empregadas e reafirmação do preconceito – ainda que implicitamente – no comentário dos patrões”, explica Felipe Gouvêa.
Para o pesquisador, seu trabalho pode abrir perspectivas para novos estudos sobre a lida das empregadas domésticas com jornadas duplas de trabalho, o que produziria modos comparados de apropriação da cozinha. Outros temas, em sua avaliação, são o consumo simbólico das empregadas no tocante ao selo gourmet e a relação dos filhos com a atividade de cozinhar.
Dissertação: Um território (re)apropriado? A dinâmica territorial da cozinha em meio a relações sociais de gênero e raça
Autor: Felipe Gouvêa Pena
Orientador: Luiz Alex Silva Saraiva
Defesa: 7 de março de 2017, no Centro de Pós-graduação e Pesquisas em Administração da Face