Ciência nunca foi tão importante
Segundo narra Nelson Rodrigues, o escritor mineiro Otto Lara Resende (1922-1992) assustou-se, na praia de Botafogo, ao notar – pela primeira vez – o Pão de Açúcar. Desgovernou o carro, teve taquicardia. Uma mulher grávida lhe teria dado um copo d’água. Há no relato um detalhe surpreendente e saboroso: Oto morava na cidade havia décadas.
A transformação espetacular que vem acontecendo na economia do mundo desde o início do século 18, quando teve início a Revolução Industrial (RI), também parece ser ignorada por parte da população e, principalmente, pelos políticos africanos e nossos vizinhos latino-americanos. De 1820 a 1910, a economia mundial multiplicou-se por 90, e a população, por sete.
A RI fundamenta-se na ciência. Em 1700, China e Índia tinham, cada uma, um PIB superior ao da Europa. Mas, já no fim do século 19, a Europa, onde se iniciou a RI, era a região mais rica do mundo. O Reino Unido, com território e população minúsculos, já havia colonizado a China e a Índia e tinha um PIB superior ao da Ásia.
Logo após a Reforma Universitária de 1968, o Brasil iniciou um programa de pós-graduação que tem sido bem-sucedido e persistente, apesar das mudanças de governo. Naquela época, tínhamos cerca de mil pessoas com o título de doutor; hoje, titulamos mais de 18 mil doutores por ano e contamos com mais de 200 mil. Caso exemplar de política de Estado, coisa rara no Brasil. Mas essa política não foi acompanhada de outras que teriam de ser seus corolários.
Estamos ampliando nossos quadros científicos, mas a ciência não foi efetivamente inserida na vida do país. O Brasil nunca formulou – muito menos praticou – uma política industrial. Nossa industrialização, que começou a ganhar força na década de 1950, teve por objetivo a substituição de importações. Para isso, o país se transformou em um porto aberto a empresas estrangeiras, sem ao menos exigir-lhes como contrapartida a internalização de parte de seu desenvolvimento tecnológico. E a elas também concedemos privilégios inéditos na história das nações: isenções fiscais, proteção alfandegária fora do comum e, algumas vezes, total reserva de mercado.
Consequentemente, essas empresas não demandam a participação efetiva dos cientistas e engenheiros científicos que temos formado, pois usam tecnologia importada das matrizes. Pior: empregam tecnologias ultrapassadas e já descartadas.
Enquanto os países altamente industrializados investem de 2,5% a 4% do Produto Interno Bruto (PIB) em pesquisa e desenvolvimento (P&D) – três quartos dos quais oriundos das empresas –, o investimento brasileiro no setor é cerca de 1% do PIB, 60% disso provenientes do governo.
Por incapacidade de competir, nossa superprotegida indústria tem decrescido em proporção ao PIB desde 1980. E há ainda um agravante. O fomento governamental à pesquisa não tem acompanhado o crescimento do número de cientistas – na verdade, vem declinando nos últimos anos. O orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) é hoje menos da metade do de 2010, apesar de a pasta ter novas funções referentes às comunicações.
Para enfrentamento da crise financeira que o mundo experimenta desde 2008, os países industrializados aumentaram o investimento em ciência, e as empresas, o investimento em tecnologia. No Brasil, fizemos o contrário.
Vale lembrar: ciência e tecnologia (C&T) são o caminho mais eficaz para desenvolver a economia. No entanto, essa sabedoria ainda não foi absorvida pelos nossos governantes. Nosso projeto de país tem sido um fracasso. Ele apoia-se no preconceito de que somos incapazes de gerar tecnologia. Entretanto, sempre que o Brasil teve de desenvolver tecnologia própria, por não haver de quem comprá-la, o resultado foi positivo e ágil. A partir de 1973, quando foi criada a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Brasil desenvolveu sua agricultura tropical – a que avança mais rapidamente no mundo.
Nosso vasto cerrado, que só servia para “fazer lonjura”, é hoje uma das áreas mais produtivas do mundo. Ultimamente, estamos desenvolvendo o boi tropical, com base na genética. No século passado, desenvolvemos o álcool produzido de cana-de-açúcar. Essa tecnologia – e de resto toda a técnica de produção de biocombustíveis – tem, no Brasil, enorme futuro, mas não evoluiu, porque o governo usou a venda subsidiada da gasolina para controlar a inflação. Um erro triplo: a inflação não foi controlada, a Petrobras teve grande prejuízo, a bioenergia tornou-se pouco competitiva, e sua produção estagnou-se.
Também fomos líderes na tecnologia de exploração de petróleo em águas profundas, e duas instituições estatais de pesquisa desenvolveram tecnologias de produção de vacinas e de soros para tratamento de peçonhas.
Por falta de função prática no desenvolvimento do país, nossa ciência não criou a sua própria agenda e, por isso, nunca se tornou protagonista no cenário internacional, apesar de já ter estatura para tal figuração.
A Revolução Industrial é um processo continuado. Neste século, iniciou-se a 4ª RI, que envolve tecnologias disruptivas que mudarão inteiramente o mundo. Com a automatização de quase tudo pelo desenvolvimento da inteligência artificial, as empresas industriais e até mesmo as de serviços – que migraram para países emergentes atraídas por mão de obra barata – serão provavelmente repatriadas e operadas por robôs.
Está nascendo a economia inteiramente baseada no conhecimento, e nações que não o cultivarem correm o risco de ficar à margem da civilização. Em resumo, nunca a ciência foi tão importante. É vital que o Brasil formule e pratique consistentemente uma agenda de desenvolvimento cuja ambição tem de ser correspondente à sua enorme área e à sua grande população. Cabe a nós, cidadãs e cidadãos brasileiros, cobrar, de cada partido político de nosso país, um programa de ciência e tecnologia. Isso vai gerar as condições capazes de garantir um futuro com mais riqueza para o Brasil e bem-estar para nossa população.
Versão resumida de artigo publicado no JC Notícias, boletim da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 21/3/2018
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