A BNCC do ensino médio: entre o sonho e a ficção
O MEC publicou, no último dia 3, a Base Nacional Comum Curricular – BNCC – do ensino médio, que servirá de instrumento de orientação para os currículos que serão desenvolvidos pelos sistemas de ensino estaduais e municipais do país.
Para entendermos o significado dessa BNCC, há que analisá-la no contexto da Lei 13.415, a lei da Reforma do Ensino Médio, aprovada em 2017. Atualmente, o ensino médio é composto por 13 disciplinas, todas obrigatórias. Existe, sem dúvida, um excesso. Essa situação foi se configurando à medida que novas disciplinas eram aprovadas pelo Congresso Nacional. O currículo aumentava como uma árvore de Natal que não cresce no tamanho, mas no número de bolas e em outros penduricalhos.
A nova lei, originária de medida provisória e aprovada a toque de caixa, instituiu um ensino médio diversificado e integral. Há uma parte comum, ancorada na BNCC, e cinco itinerários formativos (Linguagens e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Formação Técnica e Profissional). O estudante deve optar por um deles.
Uma das mudanças é que o currículo, até então pensado em termos de componentes curriculares (física, química, matemática, português, filosofia, entre outros), passa a se organizar em cinco áreas: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Formação Técnica e Profissional.
O que salta aos olhos na Lei da Reforma do Ensino Médio é a não obrigatoriedade de oferta de todos os cinco itinerários formativos. Para piorar, a BNCC completa esse quadro estabelecendo que apenas os componentes português e matemática são obrigatórios. O grande problema relacionado à falta de professores no ensino médio, que afeta todas as regiões do país, principalmente nas áreas de física e química, evapora-se como num passe de mágica. As escolas poderão simplesmente não oferecer, por exemplo, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, pois isso baixaria o custo do ensino e resolveria o problema da falta de professores.
Com certeza, as escolas particulares que recebem alunos de classe média e alta ofertarão todos os itinerários, o que fará aumentar o fosso que separa as escolas particulares da elite das escolas públicas destinadas a jovens de baixa renda. A medida condena essa população a cursar apenas os itinerários ofertados por escolas da sua região.
Outro problema grave da BNCC diz respeito à formação de professores. Hoje, a maioria das universidades prepara docentes em cada um dos componentes do currículo de ensino médio. Ao verificar o que a BNCC sugere como conteúdo das cinco áreas, não é possível reconhecer nenhum componente curricular tradicional. Na área de Ciências da Natureza e suas Tecnologias, por exemplo, uma das habilidades propostas tem a seguinte redação: “Analisar e representar as transformações e conservações em sistemas que envolvam quantidade de matéria, de energia e de movimento para realizar previsões em situações cotidianas e processos produtivos que priorizem o uso racional dos recursos naturais”.
Soa bem aos ouvidos essa cantiga interdisciplinar de analisar transformações em sistemas que “envolvem quantidade de matéria, de energia e de movimento” (no mínimo, física, química e biologia estão envolvidas) “para realizar previsões em situações cotidianas e processos produtivos” (aqui somam geografia e história e, talvez, matemática e português). São raros os cursos que preparam professores de ciências naturais para o ensino médio, e essa é uma demanda em que a BNCC é radical, pois todos os temas são trabalhados interdisciplinarmente.
Como professores formados em química, física ou biologia poderão atuar interdisciplinarmente para dar conta do currículo que surgirá a partir da BNCC? Os professores de escolas públicas têm um local de trabalho, onde possam se reunir e planejar atividades conjuntas? Não! Eles vão às escolas apenas para “dar aulas”. Planejar aulas e corrigir provas e trabalhos são tarefas que o professor faz em casa. Portanto, a BNCC impõe, em sua saga interdisciplinar, a necessidade de construir novas escolas ou ampliar as atuais, com espaços de trabalho que favoreçam minimamente o encontro entre professores de disciplinas diferentes para elaborar atividades articuladas e conjuntas. Consequentemente, as universidades passam a ser obrigadas a formar professores com perfil interdisciplinar, oferecendo cursos de ciências da natureza com aprofundamento posterior em física, química ou biologia. Isso é viável na tradição largamente disciplinar da universidade brasileira?
Na atual conjuntura, sob o peso da Emenda Constitucional (EC 95, de 2016) que limita em 20 anos os gastos públicos em educação e saúde, como obter verbas para projetar novas escolas, aumentar salários e transformar o ensino superior, preparando professores efetivamente para uma prática interdisciplinar?
Nesse sentido, as competências e habilidades previstas na BNCC já nasceram mortas, justamente por não se adequarem ao sistema fortemente disciplinar do ensino médio. Talvez seja mesmo bom criar uma demanda por um ensino interdisciplinar. Entretanto, considerando a faixa etária dos alunos de ensino médio, essa interdisciplinaridade deve ter por base uma sólida visão das disciplinas que compõem o currículo. Não se pode, portanto, abrir mão da formação atual, que é disciplinar para esse campo de atuação dos professores. O ensino médio é justamente o momento em que as disciplinas se configuram em toda a plenitude.
Preparar um professor de química com capacidade de dialogar com seus colegas de biologia e física é uma demanda mais do que legítima para as universidades responsáveis por essa formação. Mas não podemos simplesmente contribuir para o desmonte da educação pública de ensino médio, aprofundando o fosso que a separa da educação das elites. As classes sociais de baixa renda também têm direito de cursar qualquer itinerário e não apenas aqueles que um sistema de ensino precário consegue ofertar.
Eduardo F. Mortimer, professor da Faculdade de Educação e conselheiro da SBPC
Versão reduzida de artigo publicado no JC Notícias, veículo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 10/4/2018