Resistência cotidiana

Por uma nova abolição da escravatura

No Brasil, a mistura étnica aconteceu vitoriosamente. Somos um povo, ao mesmo tempo, generoso e cheio de contradições; vivemos cercados de abundância, mas com grandes bolsões de miséria. Somos a “terra da integração”, porém com enormes abismos que separam negros e brancos, de forma visível e invisível. 

Agora que completamos 130 anos de Abolição da Escravatura, essa integração põe no centro do debate o Brasil, cujo impasse étnico transformou-se no indicador que pode levar o país ao futuro como nação civilizada, ou fincar, de vez, nossa pátria, linda por natureza, nos erros do passado, dos quais a escravidão e o racismo são os mais caros e dolorosos. Certamente, o primeiro passo para a correção desses erros está condicionado ao entendimento de que o fim da escravatura se deu como resultado de uma complexa conjunção de fatores, cuja dimensão política contribuiu, em graus variados de escala e importância, para o lento processo de definhamento da prática escravista em nosso país. 

Um desses fatores, como reconhece a nova historiografia, teve caráter primordial na saga pela liberdade: as rebeldias negras. Foi graças a elas – chamadas de “quilombagem” – que 95% da prática escravista perdeu sua força como geradora de riqueza para os escravocratas e latifundiários. Outros personagens (estudantes, intelectuais, maçonaria e artistas) participaram ativamente do maior ato de desobediência civil que o Brasil registrou. Por outro lado, as doenças endêmicas (sífilis, malária e os maus-tratos físicos) foram responsáveis pelo extermínio da maior parte da nossa escravaria.

Apesar desse bem-sucedido engajamento do povo na luta contra a escravidão e de termos dado passos certeiros contra as várias formas de preconceito, ainda não se concretizou, de fato, ou seja, no dia a dia dos negros e negras brasileiros, a “abolição da escravatura”. A realidade nas vilas e favelas das metrópoles é outra. A abolição ocorreu em teoria, haja vista que são os negros e negras que figuram nas estatísticas do baixo padrão de qualidade de vida, do desemprego e da renda e moradia insuficientes. É preciso reconhecer que a exclusão substituiu a escravidão, com igual teor de perversidade. E não precisamos ir mais longe quando o assunto é exclusão, porque, como todos acompanham com indignação todos os dias, esse é o grande gargalo nacional. Também é necessário, nessa breve reconstrução histórica, apresentar alguns dados assustadores sobre o significado do fim da escravidão forçada no Brasil. Com o golpe de Estado perpetrado pelas elites nacionais, em 2016, o país entrou em crise de proporções gigantescas, pois há registros de, pelo menos, 150 mil trabalhadores e trabalhadoras em regime de semiescravidão. O desemprego atingiu 13 milhões de pessoas; a violência racial ceifou vidas de milhares de ativistas dos direitos humanos, na cidade e no campo. 

As desigualdades conjugadas – de raça e de classe – devolveram para os estratos mais baixos ao menos 20 milhões de cidadãos que estavam flutuando nas classes B e C com relativo poder de consumo devido ao boom econômico trazido pelas commodities brasileiras. No ano de 2018, a qualidade de vida do povo brasileiro caiu drasticamente. Isso deixa a sensação de que o processo histórico que possibilitou o fim da escravidão ainda não se consolidou como programa de valorização da cidadania. Atualmente, demonstrações de racismo e ofensas raciais são repudiadas nas redes sociais e nas ruas, mas, na prática, a população negra vive apartada do resto da sociedade. Exemplo: os negros são a maioria da população, com quase 52%, mas eles compõem apenas 20% dos eleitos no Congresso Nacional. Boa parte dos trabalhadores negros e negras recebe a metade do salário de um trabalhador branco, mesmo exercendo atividades profissionais com igual formação e exigência técnica. 

O Brasil aboliu a escravidão somente em teoria, mas não assumiu o compromisso de desenvolver políticas públicas humanitárias para os ex-escravos. Se queremos justiça social, precisamos urgentemente implementar ações que façam a correção dessa gigantesca injustiça cometida contra a população negra. O sucesso das ações afirmativas nas universidades públicas mostra que esse é o caminho para corrigir os erros do passado. No entanto, esse movimento precisa alcançar outros setores da sociedade e dos governos, com liberação de orçamento e efetiva participação social pautada nos preceitos do Estado Constitucional e Democrático de Direito. 

Sem democracia e sem direitos sociais, ambos perdidos na era Temer, só podemos dizer que nossa trajetória abolicionista rumo ao pleno exercício da solidariedade e da paz foi interrompida. Precisamos, sim, falar de uma nova Abolição da Escravatura, pois a anterior, de 1888, esgotou-se no tempo e no espaço e não favoreceu a colheita das olivas nos campos.

Alexandre Braga - Estudante de Ciências do Estado na Faculdade de Direito. Preside a Unegro (União de Negras e Negros Pela Igualdade)