Esperança contra a colestase

Colestase decifrada

Estudo descreve mecanismo de quadro clínico que dificulta a drenagem da bile do fígado para o intestino e para o qual não há tratamento

Um em cada 13 transplantes hepáticos resulta de necessidade imposta pela colestase, condição clínica que dificulta a drenagem da bile do fígado para o intestino e para a qual não há tratamento. A descoberta do mecanismo que a provoca abre promissoras vias de investigação e está descrita em artigo publicado na Hepatology, uma das maiores revistas da área.

Produzido por pesquisadores do Liver Center, da UFMG, com colaboração de equipe da Universidade de Yale (EUA), o trabalho inova também porque tem caráter translacional, isto é, abrange desde a ciência básica até a aplicação prática, na clínica médica. Pela UFMG, assinam o artigo pesquisadores de três programas de pós-graduação e professores do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) e da Faculdade de Medicina.

De acordo com a professora Maria de Fátima Leite, coordenadora do Liver ­Center, o trabalho tem grande relevância na clínica, pois possibilita entender a forma como a inflamação que ocorre em casos de hepatite alcoólica e de infecções, como a sepse, leva à colestase. 

A partir da esquerda: Andressa França, Marcone Loyola, Paula Vidigal, Cristiano Lima, Antônio Carlos Melo e Maria de Fátima Leite
A partir da esquerda: Andressa França, Marcone Loyola, Paula Vidigal, Cristiano Lima, Antônio Carlos Melo e Maria de Fátima Leite Foca Lisboa/UFMG


“O reconhecimento de como a inflamação se correlaciona com a colestase pode propiciar, além de tratamento com antimicrobianos, o estabelecimento de algum tipo de terapia capaz de reverter a alta mortalidade no pós-operatório dos transplantados de fígado”, comenta o professor Cristiano Xavier Lima, também autor do trabalho e cirurgião de transplantes hepáticos. Ele explica que infecções associadas à colestase estão entre as principais causas de morte de pacientes nos 30 primeiros dias após a intervenção cirúrgica. Outra autora do artigo, a professora Paula Vieira Teixeira Vidigal, explica que a equipe trabalhou em modelo de sepse, condição que leva à colestase em cerca de 30% dos casos.

Mecanismos
A equipe descobriu que o Fator Nuclear Kappa B (NF-ƙB), fator de transcrição relacionado ao processo inflamatório, ao ser ativado nos colangiócitos (células do ducto biliar), provoca a diminuição da expressão de um receptor de liberação intracelular de cálcio – o Inositol Trisfosfato do tipo 3 (ITPR3) –, desregulando a via que controla a secreção da bile. Sempre que há um processo inflamatório, o NF-ƙB se ativa e interfere na expressão de genes no núcleo das células. “Descobrimos que, após a estimulação do receptor Toll-like do tipo 4 (TLR4), o NF-ƙB é ativado e migra para o núcleo, reduzindo a expressão do canal de cálcio e, consequentemente, a secreção de fluidos e eletrólitos, que são componentes da bile”, explica o doutorando Antônio Carlos Melo. Segundo ele, antes desse trabalho, não se conhecia o mecanismo pelo qual ocorre colestase em casos de endotoxinas aumentadas, como sepse e hepatite alcoólica. 

O trabalho também propõe uma mudança de paradigma na estratégia de tratamento da colestase, uma vez que apresenta como principal alvo terapêutico os colangiócitos, células que compõem apenas cerca de 10% do fígado, mas que têm importante papel na composição final da bile, destaca Maria de Fátima Leite. A professora lembra que a equipe conseguiu reverter experimentalmente a sinalização que leva à secreção de bicarbonato e restabelecer o fluxo normal de bile.

Para elucidar a questão, a equipe fez uma série de estudos em células, em modelo animal e com amostras humanas de pacientes diagnosticados com colestase associada à hepatite alcoólica ou à sepse. “O que torna esse trabalho completo é exatamente o caráter translacional, pois abrange tanto o estudo celular e molecular, quanto o modelo animal, para que os nossos achados sejam validados. Esses experimentos, por sua vez, são confirmados em amostras de pacientes”, descreve a doutoranda Andressa França.

Paula Vidigal acrescenta que a pesquisa empregou uma variedade de técnicas sofisticadas, tanto de imagens quanto de biologia celular. “O trabalho é muito minucioso, tecnicamente muito bem feito, com todas as evidências sendo validadas de várias maneiras”, enfatiza. Na opinião de Fátima Leite, a facilidade que a equipe encontrou para publicar o artigo em revista de alto impacto reforça que o trabalho “está muito robusto, com informações muito seguras, por causa da qualidade e do cuidado nos controles e na repetição dos experimentos, por técnicas diferentes”.

União de esforços
A professora Paula Vidigal comenta que os integrantes da equipe têm em comum o interesse por doenças hepáticas, “mas cada um com um olhar diferente”. Por isso, buscaram responder a questões nos níveis molecular, celular e na aplicação clínica, o que ampliou a capacidade de alcançar respostas com uma repercussão melhor para o paciente. Paula destaca que, na UFMG, há muitos profissionais fortemente capacitados na área, mas que trabalhavam individualmente e hoje estão no Liver Center, “que reúne competências em doenças hepáticas e em divulgação do conhecimento”. 

Cristiano Xavier relata que a equipe do Liver Center “fez uma proposição para a Universidade de Yale, que tinha um trabalho na mesma linha, e os conhecimentos se complementaram. Em sua opinião, isso demonstra “a maturidade da internacionalização da pesquisa na UFMG, com grande aplicabilidade e um grande efeito no ensino”. 

O reconhecimento do trabalho desenvolvido pelo Liver Center também vem por meio de convites para participar da organização de simpósios e mesas em eventos. No ano que vem, integrantes do grupo vão discutir sua pesquisa translacional em congresso internacional de cirurgia hepato-pancreática. “Isso mostra que existe uma demanda na Medicina para que os médicos entendam melhor a ciência básica e para que a área básica se aproxime mais da realidade médica, e daí surja um conhecimento muito maior”, pondera Cristiano Xavier, que afirma ser essa “uma das grandes repercussões da união do grupo, porque nossa palavra chega a setores que antes não a ouviam”. 

Associação com outras doenças
A colestase ocorre não apenas em ­situações de infecção, mas também associada a outras enfermidades do fígado, e pode evoluir para um quadro crônico, que é muito agressivo para os hepatócitos, pois causa lesão permanente nas células, podendo levar à cirrose hepática. “Alguns pacientes com colestase crônica usam medicamentos que apenas melhoram a fluidez da bile, mas não interferem no mecanismo de formação dessa condição”, afirma Paula Vidigal. “Com essa pesquisa, podemos estar abrindo uma porta para tratar a colestase em várias situações, demanda muito importante na hepatologia”, comenta a professora.

Artigo: Effects of endotoxin on type 3 inositol 1,4,5-trisphosphate receptor in human cholangiocytes
Autores: Andressa França, Antônio Carlos Melo Lima Filho, Marcone Loiola dos Santos, Cristiano Xavier Lima, Paula Vieira Teixeira Vidigal, Maria de Fátima Leite, Mateus Guerra, Jittima Weerachayaphorn, Basile Njei, Marie Robert, Jesus M. Banales, Meenakshisundaram Ananthanarayanam e Michael H. Nathanson

Ana Rita Araújo