Esperança contra a colestase

O desafio do século 21

Um legado que o século 20 deixou para o futuro é o reconhecimento político de que os direitos humanos são uma preocupação para toda a humanidade. São universais, indivisíveis e devem ser observados no mundo inteiro, de forma igualitária. Foram necessárias as catástrofes do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial para se chegar a esse consenso.

 Antes de 1948, muitas filosofias, ideologias e religiões de diferentes culturas já se preocupavam com o bem-estar da humanidade e com os diferentes conceitos de direitos – mesmo aquelas que justificavam anteriormente a existência de torturas, escravidão, mutilação e execução. No entanto, foi a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos que a comunidade internacional aceitou obrigações concretas de respeito e de dignidade, inerentes a cada pessoa, com especial ênfase na necessidade de erradicar a discriminação. Assim, a ‘‘linguagem dos direitos’’ tornou-se presente em muitas instâncias. Se a beleza do discurso fosse um fator determinante, a questão dos direitos humanos estaria consolidada. Mas não é o caso.

O maior desafio do século 21 continua sendo a implementação efetiva de direitos sociais, econômicos e culturais. Muitos falam da ‘‘hierarquia de direitos’’ – com os direitos civis e políticos ocupando o primeiro lugar, e o social, o cultural e o ambiental aparecendo com importância secundária. Essa não foi, de modo algum, a intenção daqueles que elaboraram a Declaração Universal, que vislumbraram, naquela época, todos os direitos como partes inseparáveis do todo. E ainda os consideram dessa forma. A urgência de desenvolver mecanismos efetivos de implementação de direitos sociais, econômicos e culturais é evidente. Mesmo no século 21, somos testemunhas da iniquidade entre os países, até mesmo entre regiões dentro de seus próprios territórios, com a crescente restrição do acesso a uma vida decente, à segurança alimentar, à educação, à saúde e aos programas sociais, assim como a diminuição das condições humanas básicas de dignidade.

O paradoxo consiste em fazer esforços pela construção de um edifício racional, objetivo e estável do conhecimento humano e posteriormente deixá-lo a serviço da irracionalidade, da destruição, do medo, da exploração do homem pelo homem e da ameaça de destruição total do ambiente. Ao ser perguntado sobre o grande acontecimento do século 20, Nelson Rodrigues respondeu à queima-roupa: “a ascensão dos cretinos”. A mediocridade no poder dá mostras de que ele estava certo, ao advertir que “antigamente, os idiotas raspavam na parede diante da consciência de sua inépcia. Mas, agora, os cretinos resolveram assumir o poder. Você sabe que para cada gênio existem milhares de idiotas. Hoje, se um idiota sobe em uma lata de querosene e faz um discurso estúpido, será ovacionado e seguido por milhares de imbecis”. 

Podemos infelizmente atestar que a cretinice humana influiu mais em nossas vidas do que o sexo ou a economia. Sobre o tema em questão, o professor Ladislau Dowbor, em Os novos espaços do conhecimento (1994), narra que, terminada a última guerra mundial, foi encontrada, num campo de concentração nazista, a seguinte mensagem dirigida aos professores: “Prezado Professor, sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas por médicos diplomados. Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a educação. Meu pedido é: ajude seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e aritmética só são importantes para fazer nossas crianças mais humanas. As tecnologias são importantes, mas apenas se soubermos utilizá-las. E saber utilizá-las não é apenas um problema técnico”.

Trata-se de uma louvável crítica ao fazer científico inserido dentro de uma metodologia que se limita à descrição, classificação e generalização de fenômenos, ficando de fora de seus confins a análise valorativa do que é importante e do que não é, ou seja, a ética das ações. Cenários tenebrosos dessa natureza jogam uma pá de cal em qualquer confiança depositada em um futuro mais promissor. Minado o otimismo, reina o pessimismo na percepção da realidade. A respeito disso, a voz poética do fabuloso cantor canadense Leonard Cohen (1934-2016), na música The future (1992), já alertava:

I’ve seen the nations rise and fall/I’ve heard their stories, heard them all/but love’s the only engine of survival/Your servant here, he has been told/to say it clear, to say it cold:/It’s over, it ain’t going/any further/And now the wheels of heaven stop/you feel the devil’s riding crop/Get ready for the future:/it is murder. (Tradução: “Eu vi nações subirem e descerem / Ouvi suas  histórias, ouvi todas / mas o amor é o único mecanismo de sobrevivência / Seu servo aqui, ele tem sido dito / para falar claro, para falar frio: / Acabou, isso não está / progredindo / E agora as rodas do paraíso pararam / você sente o chicote do diabo / Prepare-se para o futuro: / é assassinato”).

Apesar do peso das violações de todos os tipos, existe um legado positivo dos direitos humanos para o século 21. Não exatamente sobre a abrangência, mas sobre o conceito. É o reconhecimento de que as pessoas são sujeitos ativos dos seus direitos – e não receptores passivos do governo ou das intervenções de propaganda e marketing. É conhecida a participação ativa dos cidadãos na busca de seus direitos e no reconhecimento de que soluções criativas podem ser encontradas, a diversidade deve ser respeitada, e os direitos sociais, econômicos e culturais devem ser concretos.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva / Jornalista. Professor da Faculdade JK, no DF. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG