UFMG estelar

Para lembrar

Esta é a terceira edição do BOLETIM em 2019. Nas duas anteriores, os autores que contribuíram para esta seção fizeram alusão a  Brumadinho, melhor dizendo, ao inimaginável rompimento da barragem em Brumadinho, algo que, a cada dia, descobrimos, espantados, que nem era tão inimaginável assim. Farei o mesmo ­neste texto e ainda será pouco, muito pouco, considerando a importância do assunto e a necessidade inquestionável de continuar falando desse episódio. Sim, devemos fazer dele algo inesquecível, ainda que, daqui a alguns meses, infelizmente, o tema possa ir adormecendo na mídia e, por efeito, na nossa memória coletiva de espectadores da dor alheia. Afinal, não é sempre assim? Passados os dias e os anos, as vítimas se descobrem solitárias com suas lacunas, suas lembranças, suas dores...

Por ocasião do episódio ocorrido em Mariana, escrevi um texto para a coluna Com a palavra, veiculada no programa Universo Literário, da Rádio UFMG Educativa – texto que agora retomo porque pretendo aqui deixar o mesmo recado: precisamos lembrar que não podemos esquecer os que se foram nem os que ficaram para nos contar o que viveram em Brumadinho naquela sexta-feira, 25 de janeiro de 2019.

Quando do rompimento da barragem do Fundão, o jornal Estado de Minas publicou matéria especial intitulada Vozes de Mariana e, assim, fez chegar até nós as vozes das vítimas da catástrofe do inesquecível 5 de novembro de 2015. Geraldo da Silva, José Paschoal, Zezinho do Bento, Maria do Carmo, Mírian Carvalho, Nívea da Silva, Paula Geralda, Edinaldo da Silva, entre outros, formam o coro de vozes que ouvi na estreia do especial.

Eu havia acabado de descobrir um texto interessante sobre a obra de Svetlana Aleksiévitch, escritora bielo-russa, vencedora do Nobel de Literatura 2015, pelo livro Vozes de Chernobil – na época, ainda não traduzido para o português. A polifonia que caracteriza a obra de Svetlana resulta em gênero que mistura jornalismo, literatura e memória. Isso porque o que ela faz é dar voz àqueles que vivenciaram os acontecimentos que relata. Os personagens dão o testemunho do que viveram e encontram espaço nas obras da autora para um registro de voz que lhes permite ser lembrados (ou que não as deixa cair no esquecimento). Svetlana já deu voz às mulheres soviéticas na Segunda Guerra, aos soldados que participaram da intervenção soviética no Afeganistão e, neste seu premiado Vozes de Chernobil, ela nos faz conhecer o testemunho das vítimas do acidente nuclear ocorrido em abril de 1986.

Em entrevista, a autora assim esclarece suas intenções: “tenho procurado um gênero de escrita que me permita a maior aproximação possível à vida real, a realidade sempre me atraiu como um ímã, tortura-me e hipnotiza-me. Escolhi como gênero as verdadeiras vozes humanas, as confissões e testemunhos, porque é assim que eu vejo e ouço o mundo, como um coro de vozes individuais e uma colagem de detalhes da vida de todos os dias. Eu não escrevo a história dos fatos, mas a história das almas”.

Percebi essas mesmas intenções na matéria especial Vozes de Mariana, apresentada em vídeos e textos, durante duas semanas, por jornalistas do EM. Em referência ao trabalho, o jornalista Carlos Marcelo Carvalho faz uma bela apresentação ao afirmar que os relatos seriam de “gente que perdeu gente, gente que perdeu bens materiais, gente que perdeu as referências do passado, gente que ganhou traumas e cicatrizes”. E faz questão de enfatizar que “a palavra não estaria com as autoridades nem com especialistas. Quem falaria em Vozes de Mariana seriam brasileiros anônimos, vítimas do descaso criminoso”. 

E pensar que, três anos depois, estamos novamente ouvindo gente que perdeu gente, gente que perdeu bens materiais, gente que perdeu as referências do passado, gente que ganhou traumas e cicatrizes. E, de novo, vítimas do descaso criminoso!

Não, não deu tempo de esquecer aquele 5 de novembro de 2015! Nunca passará tempo suficiente para esquecer as vítimas do rompimento da barragem do Fundão. Na época, julgamos ser a “maior tragédia ambiental do país”. Como imaginar que veríamos outra ainda maior em tão pequeno intervalo de tempo?!  Difícil!  Talvez por termos deixado adormecer a tragédia de Mariana é que fomos despertados incrédulos diante do ocorrido em Brumadinho. É preciso lembrar “conscientemente”, como disse o historiador Alfredo Ricardo, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), autor de pesquisas sobre memória de desastres ambientais, ao conceder entrevista, em 2016, ao jornalista Léo Rodrigues, da Agência Brasil. Hoje podemos dizer que sua declaração foi profética. Afirmou ele: “A tragédia de Mariana não pode ser entendida como excepcional e impossível de se repetir [...] Se não lembrarmos conscientemente, lembraremos como um susto, na próxima vez que a ganância ditar as regras da exploração ambiental”. E completou: “Iniciativas que preservam a memória coletiva sobre esses erros são um primeiro passo para se desviar deles. Um memorial é uma intencionalidade materializada e tem o objetivo de lembrar o que alguns querem esquecer”.

Esse alerta do historiador é forte razão para nos convencer de que, definitivamente, nunca passará tempo bastante para deixar de falar de Brumadinho. E repito: precisamos lembrar a cada dia que não podemos esquecer os que se foram nem os que ficaram para nos contar o que viveram.

Maria Cecília de Lima / Professora de Língua Portuguesa e Literatura e revisora de textos do Centro de Comunicação da UFMG