Riso que desarma
Em livro, pesquisadores refletem sobre o poder do humor para revelar a violência e prover liberdade
O humor é capaz de desvelar a violência institucional e aquela perpetrada por estratégias sociais, como códigos de pertencimento e exclusão. Ele é fruto de escolha, não é inocente, nem anódino. Por meio da surpresa, o humorista provoca a supressão de mecanismos de defesa, escrevem as professoras Myriam Bahia Lopes, da Escola de Arquitetura da UFMG, e Claudine Haroche, da École de Hautes Études em Sciences Sociales (França), no texto que abre o livro O humor contra a violência, recém-lançado pelo Núcleo de Estudos em História da Ciência e da Técnica (NEHCIT).
A obra reúne pesquisadores brasileiros e franceses que participaram do colóquio O humor contra a violência na cidade, realizado em outubro de 2017, na UFMG. Segundo as organizadoras, os artigos analisam o humor sobretudo como linguagem, o que possibilita indagar como articular a percepção, a memória e o corpo aos processos de produção e veiculação do humor.
“O humor dá visibilidade às violências que atravessam as relações. Diferentemente da linguagem formal, ele é flexível e abre a possibilidade de se tomar distância da situação e refletir sobre ela, criando saídas, diluindo o ressentimento e evitando a cristalização da posição de vítima. Se a violência é uma relação, o humor é fonte de liberdade”, comenta Myriam Bahia Lopes.
Em seu artigo, Myriam Bahia se inspira nas charges de Quinho e Henfil para mostrar como o humor pode contribuir para processos como o da transição, no Brasil, do regime ditatorial para o democrático. “O trabalho com a memória do trauma foi saltado, a violência foi negada. Parte dos problemas que enfrentamos hoje vem do recalque da violência desse período”, salienta a professora, que fez doutorado e pós-doutorados na França, sobre o tema da história da cidade, orientada por Michelle Perrot e Claudine Haroche.
No livro, Haroche aborda a autoderrisão, ou seja, a capacidade de rir de si mesmo, como forma de se pôr no lugar do outro e de resistir a uma identidade petrificada. Olivier Mongin, editor da revista Esprit, propõe uma viagem pela história do humor – desde a Idade Média, quando rir era proibido – e se detém no cinema mudo, em que nomes como Buster Keaton e Charles Chaplin “falavam” com o corpo.
Ségolène Le Men, semióloga e professora da Universidade Paris Nanterre, dedica-se, por sua vez, à análise das caricaturas de Honoré Daumier, que, na França do século 19, enfrentou a censura e lançou mão da linguagem popular para pôr-se ao lado dos menos favorecidos, vítimas da violência.
Cidade vivida
Em seu ensaio, Teodoro Rennó Assunção, da Faculdade de Letras da UFMG, apresenta o humor corrosivo do historiador e crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes, no livro Três mulheres de três PPPês (1977). “Ele explora o humor como forma de protestar contra a violência do poder do macho nas relações conjugais e contra a violência da territorialização da cidade segundo as classes sociais, decisiva em termos de modo de vida nas décadas de 1950, 60 e 70. Esse é apenas um dos elementos da violência da classe alta burguesa contra a classe pobre trabalhadora num país periférico do capitalismo”, comenta Rennó.
Ao pensar sobre o humor no espaço construído, a arquiteta e semióloga Clara Luiza Miranda, professora da Universidade Federal do Espírito Santo, recorre à canadense Linda Hutcheon, para quem o que parece cômico na arquitetura é fundamentalmente irônico. Ela cita Mikhail Bakhtin para deixar clara a diferença entre espaços físicos de caráter cívico – que dissolvem o que dá vida à cidade – e os espaços menos normatizados, que constituem a cidade vivida que inspira os artistas.
“Mostro a impossibilidade do cômico no trabalho do arquiteto pós-moderno, em razão da lógica inexorável da realidade e do capital. O espaço produzido pela máquina de crescimento urbana torna-se commodity, espaço-lixo”, diz Clara Miranda, que classifica o grafite e o rap como humor genuíno, formas de apropriação alegre e festiva dos espaços públicos.
Livro: O humor contra a violência
Organizadora: Myriam Bahia Lopes e Claudine Haroche
Edição: Núcleo de Estudos sobre a História da Ciência e da Técnica (NEHCIT/UFMG)
168 páginas / Distribuição gratuita para bibliotecas públicas e venda de 30 exemplares na Escola de Arquitetura