Ações Afirmativas: preocupação de cada um e projeto de todos
Este texto começou como uma carta de agradecimento à Comissão Permanente de Ações Afirmativas e Inclusão da UFMG, por me proporcionar um grande aprendizado e uma experiência emocionante, num daqueles momentos em que sentimos estar fazendo algo relevante e transformador.
Sou mulher, branca e privilegiada socioeconomicamente. Nasci em uma família que me propiciou condições para me dedicar aos estudos sem outras preocupações e responsabilidades. Estudei em colégios particulares e ingressei como estudante na UFMG em março de 1990, aos 18 anos. Se, por um lado, hoje, o processo seletivo na UFMG está mais concorrido, pelo caráter nacional do Sisu, por outro, caminha para ser mais inclusivo e capaz de promover o acesso de pessoas com histórias de vida diversas e mais difíceis do que a minha.
Desde 2005, sou professora do curso de medicina da UFMG, que existe há mais de 100 anos e é tradicionalmente marcado pela exclusão social e racial. Felizmente, estudos realizados pela Pró-reitoria de Graduação evidenciam que essa realidade vem se modificando. Em relatório sobre o perfil do estudante de Medicina, no período de 2008 a 2017, observou-se aumento do percentual de estudantes com renda familiar de até cinco salários mínimos, de 15% para 35%. Em 2008, apenas 14% dos alunos haviam feito o ensino médio integralmente em escolas públicas, índice que em 2017 já correspondia à metade dos egressos no curso. O percentual de estudantes que se autodeclaram negros (pretos ou pardos) passou de 24%, em 2008, para 42%, em 2017. Ressalta-se, porém, que apenas 5% se autodeclaram como de cor preta.
Meu conhecimento teórico sobre ações afirmativas é limitado. Comecei a escutar pessoas que se dedicavam à causa e a prestar atenção de verdade no tema quando as cotas foram implementadas, pois, no lugar em que estou, não havia vozes para levantar e sustentar essa discussão. Sinto vergonha disso, mas preciso ser honesta. Entretanto, meu sentimento de que o mundo está muito errado é antigo, e meu desejo de uma sociedade mais igualitária e justa vem de longa data. Por isso, acredito, sobretudo, na contribuição essencial da educação pública, gratuita e de qualidade para as transformações sociais de que precisamos e como meio imprescindível para a construção de uma sociedade mais democrática, ética e justa e de um país melhor para se viver. Como previsto no Plano de Desenvolvimento Institucional da UFMG (2018-2023), “universidades federais são chamadas a agir em consonância com valores propiciadores de justiça social” e “são responsáveis pela produção e pela disseminação do conhecimento, bem público indispensável à construção da cidadania nas sociedades contemporâneas”.
Assim, fiquei muito feliz (a princípio, diria honrada, mas aprendi que a palavra “honra” tem origens perigosas) com o convite da Comissão Permanente de Ações Afirmativas e Inclusão para participar da etapa de avaliação complementar à autodeclaração, por meio da heteroidentificação fenotípica – que significa avaliar características visíveis do candidato que, combinadas, o tornam socialmente reconhecido (ou não) como pessoa negra. Seria mais prudente não me aventurar por terras desconhecidas, mas confiando muito nas pessoas que me guiavam, fui.
Tensão, insegurança, medo de não ser justa foram os sentimentos iniciais, que, todavia, foram aliviados pelos textos lidos e pela oportunidade de conversar durante a longa e cuidadosa oficina de formação oferecida aos participantes.
Tudo muito bem preparado, ambiente calmo e acolhedor, começamos as avaliações. A pergunta norteadora era clara: o/a candidato/a é sujeito da política de ações afirmativas de reserva de vagas étnico-raciais? Percebi que, na maioria dos casos, não é difícil dizer se a pessoa é negra. Sofri muito com os casos em que tive dúvida. Porém, o fato de saber que essa etapa fazia parte de um processo muito bem elaborado e cuidadoso amenizou essa angústia.
A existência de número significativo de candidatos que não apresentavam fenótipo negro me fez ter a certeza da necessidade dessa avaliação. Fiquei me perguntando sobre os motivos que levariam a uma autodeclaração não condizente com o fenótipo observado. Lembrei das orientações durante a oficina: “nem tudo é fraude”. A questão da ascendência? É complexa, sem dúvida. Desespero? Talvez. Algumas vezes, pareceu falha na responsabilidade do/a candidato/a em se informar melhor, principalmente sobre quem tem direito às cotas étnico-raciais. No entanto, as pessoas negras pareciam se sentir respeitadas e enxergar no processo a garantia desse direito.
Concluo convencida da necessidade de passar uma mensagem forte sobre quem são os sujeitos da política de reserva de vagas étnico-raciais. Uma mensagem ética. No dizer da reitora Sandra Regina Goulart Almeida, na comemoração dos 91 anos da UFMG: “como universidade pública, temos que representar uma aposta na direção contrária: o nosso compromisso com a justiça, com o Estado democrático de direito e com os direitos humanos [...]. Políticas que, indo além da igualdade formal, coloquem o olhar sobre os sujeitos, sobre as suas histórias, sobre os seus pontos de enunciação, sobre as suas aspirações, como direitos, forjando um ambiente no qual a questão da articulação de um mundo de iguais, construído precisamente sobre as diferenças e sobre a diversidade, seja uma preocupação de cada um e um projeto de todos.”
Meus sinceros agradecimentos a Rodrigo Ednilson de Jesus, Daniely Reis Fleury e à estudante de Gestão Pública Ayana Odara. Sigamos juntos.