Por dentro das normas

O rastro dos degredados

Em dissertação, historiadora revela experiências de negros expulsos do Brasil Colônia pela Inquisição

Escravos condenados às galés retratados pelo tenente Henry Chamberlain
Escravos condenados às galés retratados pelo tenente Henry Chamberlain Imagem extraída do livro 'Vistas e costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1819-1820'

O tribunal da Inquisição surgiu na Idade Média para combater a propagação do culto a seitas religiosas na Europa. A partir do século 16, em Portugal, o regime forçou judeus e muçulmanos a se converterem ao catolicismo – prendendo, torturando ou exilando os considerados hereges, segundo julgamento da Igreja Católica. 

“O que poucos sabem é que a Inquisição mantinha ‘fiscais’ nas colônias, responsáveis por denunciar ao Tribunal do Santo Ofício a prática de rituais religiosos e de mediação com o sobrenatural, como os de matriz africana, professados por negros escravizados ou alforriados”, afirma a historiadora Thaís Tanure de Oliveira Costa, que rastreou a trajetória de negros degredados das colônias portuguesas. O destino dos condenados eram regiões fronteiriças de Portugal ou o trabalho forçado nas galés – barcos a remo usados na defesa do território.

O degredo para um lugar isolado era considerado uma pena duríssima, como ressalta Thaís Tanure. “Especialmente para os povos centro-africanos, o conceito de liberdade era muito ligado ao pertencimento, que envolvia, inclusive, o culto à ancestralidade”, afirma Thaís, autora de dissertação defendida em outubro de 2018 no Programa de Pós-graduação em História da UFMG. 

A pesquisadora inventariou 59 processos, localizados em arquivos portugueses como o Nacional da Torre do Tombo, o Histórico Ultramarino, o Central da Marinha de Lisboa e a Biblioteca Nacional.

Desarticulação

Entre os personagens cujas trajetórias foram exploradas no trabalho, destacam-se os curandeiros Luzia Pinta, angolana escravizada e enviada para Sabará, e Domingos Álvares, beninense que viveu no Rio de Janeiro. Acusados de “superstição e pacto com o diabo”, ambos foram condenados, em 1744, a cumprir quatro anos de degredo em Castro Marim, no extremo sul de Portugal. 

De acordo com a historiadora, Luzia e Domingos seguiram professando sua fé e promovendo rituais de cura em muitas cidades portuguesas, onde também foram perseguidos. “Mas, sem suas congregações, eles não puderam mais realizar seus ritos da mesma forma que faziam no Brasil, o que mostra o potencial do degredo de desarticular comunidades africanas”, observa Thaís.

Contradições

Como emblemáticos das contradições inerentes à pena de degredo, a autora menciona os casos de José Sérvulo e Francisco da Costa. O primeiro, desejoso de voltar para Portugal, onde tinha família, forçou a própria condenação ao adorar o diabo em frente a uma igreja em Olinda, no ano de 1595. Já no século 18, Francisco furtou premeditadamente uma hóstia consagrada em Belém, com o intuito de ser julgado pela Inquisição e se livrar do cativeiro. “É provável que a concepção de liberdade desses indivíduos fosse próxima da que temos hoje. Eles conheciam o dispositivo penal e agiram estrategicamente”, comenta a autora.

A extradição para a Europa também desagradava os proprietários, pois gerava prejuízos econômicos. “Encontrei seis cartas de senhores pedindo ressarcimento ao Santo Ofício”, relata Thaís, acrescentando que, naquele contexto, o amo era obrigado legalmente a arcar com os custos processuais e o sustento do cativo. “Do ponto de vista do Estado, o valor econômico, muitas vezes, foi preterido em favor de uma ‘purificação da sociedade’. Mas a Inquisição também tentou conciliar a penalização com o escravismo, perdoando alguns escravizados a pedido de seus senhores”, argumenta.

Para a historiadora, o regime da Inquisição deixou ecos que ainda repercutem nas esferas jurídica e social. “A sociedade ainda hoje busca se purificar socialmente excluindo quem é diferente”, ressalta. O trabalho, em seu entendimento, desperta reflexão sobre a resistência à marginalização. “Hoje, prevalecem outras formas de exclusão social dos afrodescendentes. As religiões de matriz negra ainda são apedrejadas no imaginário do povo. A violência policial contra os negros, embora não legitimada pela lei, é, de certa forma, aceita. O racismo institucionalizado persiste no Brasil por causa desses ecos”, avalia a autora.

Dissertação: “Nas terras remotas o diabo anda solto”: degredo, Inquisição e escravidão no mundo atlântico português (séculos XVI a XVIII)
Autora: Thaís Tanure de Oliveira Costa
Orientadora: Adriana Romeiro
Defendida em 30 de outubro de 2018, no Programa de Pós-graduação em História da UFMG

Matheus Espíndola