A família cresceu

O gume afiado da linguagem e a esperança ativa

“Se nos deitamos, estamos mortos.” (Joseph Ki-Zerbo, político e historiador de Burkina Faso)

Em sua teoria sobre a linguagem e a experiência humana, o linguista francês Émile Benveniste explicitou que o homem, em todas as suas atitudes, é um ser ideológico. A superficialidade exacerbada tem produzido efeitos interessantíssimos nesse corre-corre da vida cotidiana.

Não é curioso perceber que andamos para lá e para cá, mas carregamos a sensação de nada termos feito com o nosso tempo? A coisificação, em escala crescente, de todas as dimensões do existir, nesses tempos tidos como “pós-modernos”, marcadamente tecnologizados, esvazia quase por completo qualquer possibilidade de reflexão vertical. Haveria alguma alternativa? Ou só resta, de fato, juntar-nos à massa manobrável?

Antes de decidirmos sobre qual caminho seguir, melhor sorte nos assistiria retomar a definição de “ideologia”, substantivo feminino tão presente nas conversas dos brasileiros, notadamente nos últimos meses. De acordo com o filósofo francês, nascido na Argélia, Louis Althusser, no clássico Aparelhos ideológicos de Estado (1970), a expressão foi forjada por Catanis, Destutt de Tracy e alguns amigos para designar por objeto a teoria (genérica) das ideias. A ideologia representaria a relação imaginária dos indivíduos com suas considerações reais de existência e, também, interpelaria esses sujeitos.

Não se deve confundir a ideologia com a mentira, conforme acentua Robert K. Merton, sociólogo estadunidense, em trecho de sua teoria da ideologia, que integra a obra Sociologia: teoria e estrutura (1949). Esse conjunto de ideias ou crenças partilhadas, postula o sociólogo britânico Anthony Giddens, em Sociologia (2001), serve para justificar os interesses dos grupos dominantes. Portanto, estão presentes em qualquer sociedade em que existam “desigualdades enraizadas sistemáticas entre os indivíduos”. O conceito liga-se, na proposição de Giddens, ao de poder, pois os sistemas ideológicos se prestariam a legitimar o poder diferenciado detido por grupos.

Assim sendo, poderíamos conjecturar que tudo é ideológico. Abrir os olhos ao acordar é um gesto plenamente ideológico. Fechar os olhos, os ouvidos e a boca também o é. Pensar e não querer pensar não se descola desse mecanismo de apreensão das configurações do mundo. Às vezes, é meramente questão de escolha. Talvez tudo na vida se resuma, ou se desdobre, em virtude de nossas escolhas.

Parece haver um fortalecimento de processos de tomada de decisão, em diferentes partes do mundo, que se aproximam justamente pelo fato de impulsionarem regimes de violência. Essas ideologias que enamoram a morte descortinam uma realidade distópica que, se levada a efeito, movimentaria nações na direção do acoplamento ao conceito filosófico do termo, que caracteriza uma sociedade imaginária controlada pelo Estado ou por outros meios extremos de opressão, criando condições de vida insuportáveis aos indivíduos.

Para vencer a perplexidade que esse enlace da morte tende a nos provocar, vale pedir auxílio, por exemplo, ao pensador pós-colonial camaronês Achille Mbembe, que define o perigo de nos tornarmos seres humanos destutelados, caso confundamos ideologia com mentira. Na delimitação de Mbembe, em seu Políticas da inimizade (2016), descerebrizar “consiste certamente em operar, se não uma amputação do cérebro, pelos menos a sua esterilização”.

Quando aceitarmos essa amputação, contribuiremos, sem nenhuma pecha, para manutenção da “lei da desigualdade”, que, para o camaronês, estabelece a categoria dos arbitrariamente não semelhantes, sem-lugar, os que não têm qualquer direito a ter direitos. Acreditamos, no caso do Brasil, que uma boa estratégia de construção de outros e mais justos rumos se dá por meio de investimentos em educação, sobretudo a educação pública e de qualidade, como, aliás, prevê a Constituição Federal de 1988.

Também não temos dúvida quanto à força da linguagem para a materialização dessa esperança ativa. Ainda nos termos de Mbembe, “precisamos mesmo de uma língua que constantemente fure, perfure e escave como uma broca, saiba ser projétil, uma espécie de direito absoluto, de vontade que, incessantemente, atormente a realidade. A sua função já não é apenas a de fazer soltar os cadeados, mas também de salvar a vida do desastre que assoma.”

Não combater “ideologias perversas”, que primam pela instalação de relações assimétricas, impulsiona a perenidade de uma tessitura social hierarquizada em castas. Em nações ancoradas em regimes desse matiz, acentua-se a compartimentação de indivíduos de primeira e segunda classes, aqueles sujeitos que nunca serão alcançados pelos direitos, pois não estariam presentes em quaisquer processos de tomada de decisão, nem por meio de representantes.

Um estado fomentador dessa paranoia performatiza o apagamento da diversidade, sobretudo dos rotulados de desviantes. Talvez, num discurso com tamanho grau de ficcionalidade, encontrar-se-iam categorizados, por exemplo, homossexuais, feministas, negros, quilombolas, indígenas, sindicalistas, as “não pessoas”, tomando emprestada a noção abordada pela escritora canadense Margareth Atwood em O conto da aia (1985).

“Caminho dez passos, e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”

A perplexidade permeia, mas ela há de ser parte do caminhar, como registrou Eduardo Galeano ao citar Fernando Birri: “Caminho dez passos, e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”

Wellington Marçal de Carvalho / Bibliotecário-documentalista. Professor do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Rondônia e Neide da Silva Dantas Mendes / Jornalista. Servidora técnico-administrativa em educação lotada na Escola de Música da UFMG