A cultura do ódio
Vivemos dias difíceis, de vozes múltiplas, que parecem nunca dialogar, ávidas que estão para atacar e julgar. Discriminações, preconceitos, guerras, escravização, tortura, raiva sempre existiram entre nós, humanos. Manifestações de ódio não são uma novidade da nossa época. A quem interessa uma população que pensa “o outro é perigoso, é o inimigo; arme-se, prepare-se para a luta”? Ao mesmo tempo, há pessoas boníssimas, fazendo coisas maravilhosas, que aparecem tão pouco – isso quando aparecem. Houve uma inversão de valores. Precisamos, sim, alertar contra os malfeitos e os erros de compreensão humana, alertar contra os preconceitos e as discriminações, alertar contra as várias formas de violência. Mas é preciso também dar visibilidade ao que é benéfico, aos bons exemplos.
Atrai-se mais gente para um grupo inspirando os horrores do inferno do que apresentando as delícias do passado. O medo é o primeiro dos quatro gigantes da alma, como diria o médico cubano Emilio Mira y López (1896-1964), pois interfere na nossa capacidade de agir como os outros querem que a gente aja. Tendemos a abrir mão da liberdade se sentirmos que a nossa vida está em risco. Em seu livro Prisioneiras (2017), o médico Drauzio Varella diz que, na prisão, não é a liberdade que as pessoas debatem, mas a sobrevivência. Portanto, até mesmo o valor “liberdade” diminui quando o imperativo categórico chamado “sobrevivência” se sobrepõe. Preferimos sobreviver a ser livres. Nós somos pessoas assustadas. E pessoas assustadas obedecem com facilidade. Ou: “A Cuca vem pegar...”.
Atrai-se mais gente para um grupo inspirando os horrores do inferno do que apresentando as delícias do passado.
Nós assustamos o outro porque, assim, conseguimos a submissão. Sem o risco da nota em sala de aula, sem o risco da polícia, sem o medo da punição, o bem tende a não se sustentar – o que é uma visão pessimista do ser humano. O medo está na base de quase todos os grandes preconceitos e ódios que cultivamos. Alguém com medo é alguém que aceita a autoridade. Leonardo Boff, certa vez, mencionou as quatro grandes sombras da cultura brasileira: o colonialismo, o holocausto indígena, a escravidão e a corrupção. O Brasil e os demais países americanos eram descritos como verdadeiros paraísos terrestres. Do ponto de vista da psicodinâmica do inconsciente cultural, qual a razão dessas fantasias? É importante questionar o ponto de vista etnocêntrico com o qual se percebe esse encontro de duas grandes civilizações, a europeia e a americana, que antes nunca tinham se encontrado.
Associado ao mitologema do Paraíso Terrestre está o poderoso mito da Grande Mãe, eterna doadora de benesses sem limites. Esse é um dos mitos fundadores da terra brasilis. Os europeus, ao chegarem ao Novo Mundo, viram principalmente uma fonte inesgotável de bens naturais que seriam explorados e enviados à metrópole. Ainda nos dias de hoje, à esteira do complexo cultural da colonização, a fantasia da Terra-Mãe eterna produtora de matérias-primas (commodities) para serem exportadas, com ausência de um desenvolvimento industrial significativo, domina a cultura nacional. Se o bárbaro é aquele que exclui o outro, enquanto o civilizado é aquele que aceita o outro na sua diferença e autenticidade, por que nos tornamos bárbaros, apesar de civilizados?
A cultura do ódio foi destrinchada criticamente no livro Uma reportagem maldita: Querô (1976), de Plínio Marcos (1935-1999). Já agonizante, o marginal Querô conta a um jornalista a história da sua vida, momentos antes de ser “apagado” pela polícia. Filho de uma prostituta que, desesperada, suicida-se bebendo querosene, o marginal foi apelidado ironicamente de Querô, redução da palavra querosene. Sua experiência será marcada pela arquitetura da destruição. Com pai desconhecido e mãe suicida, criado num prostíbulo, ele liga-se muito cedo a um grupo de “trombadinhas”; rouba, é traído pelos companheiros e acaba sendo preso. Eliminar os policiais seria um modo de compensar todas as agressões de que foi vítima ao longo da vida. Uma vez armado, entra em conflito aberto com os policiais; mata-os, mas também é alvejado. Ferido, agonizante, é caçado e descoberto por uma equipe de policiais (Esquadrão da Morte?) que o elimina, fuzilando-o impiedosamente.
Não devemos nos esquecer de que o preconceito é insidioso e que todos fomos educados e condicionados a pensar de acordo com as estruturas coloniais e racistas. Temos convivido com uma história de privilégios, colonialismo, discriminação, exclusão, como se essas situações fossem normais. No mundo atual, o racismo e a intolerância à diferença mostram-se cada vez mais frequentes e mais cruéis. Entre outras razões, nós nos tornamos bárbaros porque nos desumanizamos, porque produzimos um esvaziamento da nossa subjetividade, porque nos afastamos das nossas tradições, porque nos desenraizamos das nossas origens, porque dessacralizamos o mundo em que vivemos, porque fomos engolidos por uma lógica capitalista perversa, porque nos falta amor ao próximo, este simples e, ao mesmo tempo, sofisticado elemento civilizador.
Sessenta mil homicídios por ano elevam o Brasil ao topo do ranking mundial nesse quesito brutal. As maiores vítimas, nesse contexto, são jovens, negros e moradores das periferias.
“Moro num país tropical/ Abençoado por Deus/ E bonito por natureza”. Essa alusão simpática ao Brasil, cantada por Jorge Ben Jor em País tropical (1969), vem perdendo sentido por conta da violência que nos assola. Sessenta mil homicídios por ano elevam o Brasil ao topo do ranking mundial nesse quesito brutal. As maiores vítimas, nesse contexto, são jovens, negros e moradores das periferias. A respeito, basta ouvir atentamente Negro drama (2002), canção do grupo de rap Racionais MC’s. Também é alarmante saber que o país se encontra na quinta posição mundial em número de feminicídios. A crueldade não para: a cada 29 horas, uma pessoa LGBT morre vitimada por crime de ódio. Já sabemos a causa desse quadro vergonhoso: a violência é um subproduto do desinvestimento na educação. Como se percebe, precisamos de brilho nos olhos, não de fogo nos olhos.