Memória em performance
Pesquisadora revela como a arte contemporânea incorpora os arquivos em suas poéticas e promove resistência ao esquecimento
Em tempos de excesso de informação e de estímulos, um grande risco é o do esquecimento. E as sociedades, premidas pela necessidade de reter dados e experiências, refinam métodos arquivísticos. Esse fenômeno não passa despercebido pela arte, que incorpora o arquivo em suas poéticas para tensioná-lo, desestabilizá-lo, subvertê-lo.
“A arte é uma sinalizadora potente, ela se ocupa de tudo que nos põe em perigo. Ao problematizar o movimento entre lembrar e esquecer, ela promove resistência ao esquecimento”, afirma Renata Alencar, que investigou o assunto em seu trabalho de doutorado no Programa de Pós-graduação em Artes da UFMG.
Renata analisou 13 obras que estabelecem diferentes relações com o arquivo e com a memória, ancoradas em dimensões como a rigidez de acervos institucionais, classificação, lugar, coleções particulares, digitalização, além da apropriação, por parte da obra, do processo de sua própria criação. Ela se inspirou no programa epistemológico de Walter Benjamin, cuja metodologia propõe a abordagem dos objetos de análise em “constelações”. E identificou seis “movimentos constelares” que revelam as “vizinhanças”, ou seja, as paisagens conceituais habitadas pelas obras.
‘Anarquivistas’
Na série fotográfica Cicatriz, Rosangela Rennó confere novos significados a um arquivo de fotografias de tatuagens de presidiários, uma forma, segundo Renata Alencar, de encontrar para os sujeitos outras histórias, que se contrapõem às narrativas hegemônicas. Na mesma linha, o espanhol Antoni Muntadas, na obra hipermidiática The file room, reorganiza dados censurados em diferentes momentos da história, para discutir a incompletude dos arquivos e a dependência do olhar de quem estrutura e de quem acessa as informações. “Esses são artistas ‘anarquivistas’, que atravessam acervos institucionais para subverter o modus operandi”, diz a pesquisadora.
Ela se inspirou no programa epistemológico de Walter Benjamin, cuja metodologia propõe a abordagem dos objetos de análise em 'constelações'.
A dimensão lugar é explorada, entre outros, por Jonathas de Andrade, que criou o Museu do Homem do Nordeste. O projeto itinerante agrega ao acervo do museu original e homônimo, criado por Gilberto Freyre no Recife, obras do próprio artista. De acordo com Renata Alencar, ao mesmo tempo que reforça a importância da instituição, dedicada à cultura, à complexidade e aos estereótipos que cercam o nordestino, a obra “evidencia a ideia de museu como narrativa sem neutralidade”.
Para pôr em questão a arbitrariedade da classificação dos arquivos, alguns artistas estabelecem coleções apoiadas na fricção entre real e imaginário, como fizeram a iraniana radicada no Afeganistão Shamsia Hassani, que criou, em Dreams of grafitti, intervenções digitais em fotografias de ruínas de guerra em Cabul – onde ela não pode grafitar, por razões de segurança –, e Walmor Correa (Biblioteca dos enganos), que inventou uma biblioteca zoobotânica reproduzindo erros dos primeiros tratados e enxertando outros.
Criação em fluxo
O último “movimento constelar” abordado por Renata Alencar agrupa obras que são a performance de seu próprio processo criativo. Em The folders, o artista búlgaro Nedko Solakov organiza, de forma cronológica, três décadas de carreira com esboços e outros documentos. “Ali, o jogo é de que tudo é real: ele exibe, na mostra retrospectiva, materiais que supostamente usou na elaboração de seus trabalhos”, explica Renata. De modo diferente, Sophie Calle e Fabio Balducci criaram o vídeo-ensaio Unfinished, em que contam a tentativa de criar uma narrativa para imagens do circuito interno de segurança de um banco.
“Trabalhos como esse encenam a documentação para discutir o próprio processo. A narrativa é construída no momento em que está sendo tecida. Dessa forma, as obras capturam algo marcante na produção contemporânea, que é a ênfase na criação em fluxo”, diz a pesquisadora. Ao concluir sua tese, Renata Alencar escreve que “a própria arte, nesse sentido, desafia o tratamento que a história haverá de lhe dar”. Ela enxerga uma preocupação da arte em construir um discurso de si que deverá resistir no futuro, sem que essa resistência possa ser condensada em uma página da história. “O processo é a memória, e a memória é o processo”, sentencia.
Tese: Arquivos em performance: poéticas da memória na arte contemporânea
Autora: Renata de Alencar Ferreira
Orientador: Carlos Henrique Falci
Programa de Pós-graduação em Artes