Festival da memória

Desafios da enfermagem para uma prática com equidade

Decididos a levar em frente nossa participação na consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) e confiantes na organização e na força da enfermagem brasileira, assumimos o compromisso de prosseguir com as reflexões sobre o tema central da 80ª Semana Brasileira de Enfermagem, em 2019: A enfermagem e os sentidos da equidade, aprovado na 79ª Reunião do Conselho Nacional da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), realizada em Curitiba, em novembro de 2018. O conteúdo dos debates contempla três subtemas: desafios para a prática da enfermagem com justiça social e sustentabilidade ambiental; desafios para uma prática equânime destinada a grupos sociais heterogêneos (classe, gênero, raça/etnia e cultura) e desafios para a produção equânime e sustentável do cuidado a pessoas, famílias e comunidades vulneráveis.

Essa escolha levou também em consideração a 16ª Conferência Nacional de Saúde, que ocorrerá no segundo semestre de 2019, em cujo documento nacional destaca-se o eixo Saúde como direito, segundo o qual a saúde é condição que deve ser acessível a todos: pobres, ricos, brancos, negros, índios, mulheres, homens, crianças, idosos, trabalhadores formais e informais, quilombolas, populações ribeirinhas e em situação de rua. Não deve haver privilégio de uns em detrimento de outros, e o respeito às especificidades de cada um é fundamental para garantir a equidade.

Sobre as relações entre a equidade e o exercício da enfermagem, no livro Sociologia aplicada à enfermagem, coordenado por Tamara Cianciarullo, os autores, ao discorrerem sobre os aspectos sociológicos que fazem conexão com as práticas de enfermagem, questionam: é possível atuar como profissionais de saúde na perspectiva da equidade? 

O conceito de equidade em saúde começou a ser debatido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1986. Ele consta na Carta de Ottawa – documento resultante da Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde – como um dos oito pré-requisitos para a saúde mundial. 

No dicionário da educação profissional em saúde, produzido pela Fiocruz em 2009, ao se discorrer sobre o tema, destaca-se que o princípio de equidade surge, no período contemporâneo, associado aos direitos das minorias e introduz a diferença no espaço público da cidadania – espaço, por excelência, da igualdade. Nesse sentido, a noção de igualdade se associa à de equidade. Não cabe, nesse campo, um padrão universal que não comporte o respeito às diferenças. Trata-se de um padrão equânime. Igualdade está relacionada à distribuição homogênea de uma mesma quantidade de bens ou serviços. A equidade, por sua vez, implica reconhecimento de que as pessoas são diferentes e têm necessidades diversas. 

O princípio da equidade tem sido operacionalizado em duas dimensões principais: condições de saúde e acesso aos serviços de saúde. Assim, esse princípio estabelece um parâmetro de distribuição heterogênea. Se o SUS oferecesse exatamente o mesmo atendimento para todas as pessoas, da mesma maneira, em todos os lugares, estaria provavelmente oferecendo coisas desnecessárias para alguns e deixando de atender às necessidades de outros, o que manteria as situações de desigualdades.

O exercício da enfermagem com equidade pressupõe a superação de complexos desafios distribuídos em quatro dimensões: assistência, gestão, formação e corporativa.

Em nossa visão, o exercício da enfermagem com equidade pressupõe a superação de complexos desafios distribuídos em quatro dimensões: assistência, gestão, formação e corporativa. Na dimensão da assistência, propõe-se superar a divisão técnica do trabalho na enfermagem, buscando o elo que une a equipe, ou seja, o cuidado. O enfermeiro deve assumir o seu protagonismo, incorporando a responsabilidade pela tomada de decisões no planejamento dos cuidados de enfermagem. Na dimensão da gestão, há o desafio de superar a dificuldade de tomar decisões de forma compartilhada e a necessidade de estabelecer processos de trabalho mais democráticos e inclusivos. Sobre a formação e educação permanente, afirma-se que é necessário levar em conta as diferenças e subjetividades dos profissionais, além das especificidades do processo de trabalho. O último desafio, o da dimensão corporativa, diz respeito ao baixo envolvimento político dos profissionais de enfermagem com associações de classe e órgãos de fiscalização. É necessário superar a pouca valorização que um contingente tão grande de profissionais confere aos nossos conselhos de fiscalização e associações.  

“A inclusão acontece quando se aprende com as diferenças e não com as igualdades”

Assim, para exercer uma prática equânime, justa e inclusiva, temos de fortalecer a identidade coletiva e singular da enfermagem. Cabe a nós, enfermeiros e docentes, nos comprometer com o aprofundamento dessa reflexão sobre os desafios da enfermagem para uma prática com equidade. Como lembrou Paulo Freire, patrono da educação brasileira, “a inclusão acontece quando se aprende com as diferenças e não com as igualdades”. Nessa direção, reafirmamos nossa disposição de estimular nossos estudantes a desenvolver consciência crítica e política, capacitando-os a atuar de forma ativa na consolidação de uma sociedade democrática e equânime.

Márcia dos Santos Pereira / Professora do Departamento de Enfermagem Aplicada da Escola de Enfermagem