‘Vibranium’ da vida real

Governando por decretos: entre armas e sintomas autoritários

A edição do Decreto 9.785/2019, de maio deste ano, que regulamentou a ampliação do porte de armas em diferentes situações, evidencia uma prática que parece ser do interesse do presidente Bolsonaro: governar mediante decretos. Logo após assumir o cargo, em janeiro, ele já havia avançado sobre a matéria ao editar o Decreto 9.685/2019, regulador de um suposto “direito” à posse de armas. O decreto publicado em janeiro foi revogado pelo de maio. Ainda que o Senado Federal tenha se posicionado, em 21 de junho, pela suspensão do decreto, o assunto ainda é dependente de uma decisão da Câmara dos Deputados e chama a atenção para as predileções autoritárias do atual governo federal.

Em uma primeira e simples comparação, o Decreto 9.785/2019 é, de fato, muito mais amplo que o 9.685/2019. O dispositivo de janeiro tratava de modo mais direto da posse de arma de fogo e, por isso, apenas alterava em parte o que dispunha o regulamento anterior do Estatuto do Desarmamento. O Decreto 9.785/2019 revogou os dois decretos anteriores e tratou de modo muito mais amplo sobre a aquisição, o cadastro, o registro, a posse, o porte e a comercialização de armas de fogo e de munição.

Sob a perspectiva da segurança pública e dos efeitos que mais armas provocam na violência, há importantes estudos  que correlacionam o aumento de homicídios e lesões à facilidade do acesso à posse e ao porte de armas. Contudo, nossa perspectiva de análise é outra. Há inconstitucionalidades e efeitos perigosos para a democracia nessa empreitada por mais armas.

Primeiro, as inconstitucionalidades: os decretos são atos normativos secundários, ou seja, existem para que um presidente, um governador ou um prefeito apenas regulamente leis. Não se pode regulamentar diretamente uma constituição por meio de decretos. Eles apenas exprimem a necessidade de algum detalhamento que possibilite operacionalizar algo definido em leis, estas sim reguladoras de uma constituição.

Assim, se um decreto pura e simplesmente é contrário à lei, ele é, obviamente, ilegal. E por uma razão simples: cabe ao Poder Legislativo aprovar leis por meio de representantes eleitos. Não se trata de uma atribuição do chefe do Poder Executivo.

Sempre que há um aumento na produção de decretos, uma luz vermelha é acesa. Embora isso possa ocorrer em decorrência, por exemplo, do aumento de políticas públicas executadas, também pode ser o caso de uma tendência autoritária, de concentração de poderes pelo Executivo. No presente caso, o Decreto 9.785/2019 parece se situar dentro das hipóteses em que a lei foi flagrantemente violada.

A Lei 10.826/2003, conhecida como Estatuto do Desarmamento, explicita que hipóteses de concessão de registro ou porte são dependentes de comprovação de “efetiva necessidade” pelo requerente. Assim, ao permitir, por exemplo, que um advogado, agente de trânsito ou motorista de empresa e transportador autônomo de carga possam requerer porte de arma de fogo à Polícia Federal, sem comprovação de “efetiva necessidade” para o “exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física”, o decreto faz presumir cumprido um requisito por exclusiva vontade do presidente da República. Consequentemente, o dispositivo abandona um requisito previsto em lei aprovada no Congresso Nacional para defini-lo em termos do que deseja uma única pessoa, o chefe do Executivo federal.

Nesse mesmo sentido argumentou o Ministério Público Federal, por meio de sua Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, ao defender a inconstitucionalidade do Decreto 9.785/2019. Em nota técnica encaminhada ao Poder Legislativo federal, o órgão afirma que, da forma como apresentada, a modificação pretendida no regime de posse e uso de armas de fogo “deveria ter sido submetida ao Congresso Nacional por meio de um projeto de lei, pois não se trata de matéria meramente regulamentar, mas, sim, de alteração de uma política pública legislada”.

Os perigos que o decreto pode trazer para a democracia podem ser comparados ao excesso de poder por vezes conferido à figura de um presidente, ainda que democraticamente eleito. O filme Vice, de Adam McKay, retrata o antigo desejo de Dick Cheney, vice-presidente na gestão de George W. Bush, de que prevalecesse nos Estados Unidos a teoria do poder executivo unitário. Segundo ela, o presidente incorporaria, em boa parte, a administração federal, evitando, assim, que o legislativo pudesse exercer funções de fiscalização mais importantes.

Essa teoria teve seu auge na defesa que o jurista John Yoo fez dos diversos poderes exercidos pelo presidente George W. Bush durante o período que se seguiu ao 11 de setembro de 2001. É nesse contexto que autores como Ellen Kennedy discutem como a expansão das competências do Executivo foi uma marca da crise na Alemanha na década de 1920, bem como do atual cenário estadunidense. A expansão do executivo incluiu, nos EUA, o poder de usar “técnicas avançadas de interrogatório”, eufemismo para tortura, e o poder de expedir executive orders (dispositivos equivalentes ao nosso decreto).

Além de estimular a violência e conferir irrestritamente a inúmeras pessoas o poder de resolver litígios com armas, ele demonstra uma incapacidade de observar as exigências constitucionais e institucionais que funcionam para qualquer presidente.

O Decreto 9.785/2019 é mais um motivo de preocupação em relação às predileções autoritárias do governo Bolsonaro. Além de estimular a violência e conferir irrestritamente a inúmeras pessoas o poder de resolver litígios com armas, ele demonstra uma incapacidade de observar as exigências constitucionais e institucionais que funcionam para qualquer presidente.

A resistência em atender aos limites das prerrogativas presidenciais, extrapolando-as para subjugar as competências legislativas do Congresso Nacional eleito, indica um perigo para a separação de poderes e para o papel de fiscalização mútua, garantias básicas para o Estado Democrático de Direito. Para alguém que evita ao máximo o debate legislativo, o decreto editado em 7 de maio é mais um fruto da tentativa desesperada de demonstrar eficiência apresentando soluções apressadas e irrefletidas que põem em risco a democracia brasileira.

Versão resumida de artigo publicado originalmente no blog Democratizando, do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG). A íntegra do texto está disponível neste endereço.  

Emilio Peluso Neder Meyer, professor da Faculdade de Direito e coordenador do Centro de Justiça de Transição da UFMG. Ana Carolina Rezende Oliveira, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Direito e pesquisadora do CJT/UFMG