As ameaças da carne

Cães e tutores em perigo

Pesquisa da Veterinária mostra que alimentar esses animais com carne crua aumenta em até 28 vezes o risco de contaminação por bactérias

A carne crua, cada vez mais usada como base da alimentação para cães, aumenta o risco de contaminação, por bactérias, tanto dos próprios animais quanto das pessoas que convivem com eles no ambiente doméstico. Pesquisa inédita, realizada no Departamento de Medicina Veterinária Preventiva da UFMG, identificou, além da Salmonella spp, a presença das bactérias Escherichia coli patogênicas e Clostridium difficile nas fezes de cães que se alimentam de carne crua. Segundo o professor Rodrigo Otávio Silveira Silva, coordenador da pesquisa, esses patógenos apresentam potencial para causar infecções em humanos, e os efeitos vão desde diarreia até distúrbios sistêmicos graves, que podem levar à morte.

O estudo, que contou com participação da doutoranda Carolina Pantuzza Ramos e da graduanda e pesquisadora de iniciação científica Flávia Viegas, também revelou, pela primeira vez no Brasil, o perfil de 400 tutores de cães e o que eles pensam sobre a alimentação de seus animais. Os entrevistados, moradores de Belo Horizonte e da Região Metropolitana, foram divididos em dois grupos: o dos que oferecem ração para os cães e o dos que servem carne crua como base da dieta de seus animais.

 Diversos isolados das três bactérias encontradas nas fezes dos cães que ingerem carne crua revelaram-se multirresistentes à ação de antimicrobianos.

Os dados, surpreendentes na avaliação do professor, revelaram que 70% das pessoas que oferecem carne crua aos seus cachorros o fazem por acreditar que é um alimento mais natural. Destes, 80% não veem risco de contaminação para o cão, e 95% acreditam não haver risco para humanos. “Percebemos que essa opção é baseada em uma questão filosófica, mas não tem fundamentação científica. As pessoas confundem, acham que os cães são carnívoros, mas não são. Desde que foram domesticados, há mais de 10 mil anos, suas enzimas do trato gastrointestinal sofreram alterações. Eles ainda precisam ingerir mais proteínas, mas só a carne crua traz riscos. A própria Associação Mundial de Veterinários de Pequenos Animais e o Centro de Controle de Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, já alertaram para os riscos dessa dieta”, afirma o professor.

O mais preocupante, segundo Rodrigo Silva, é que diversos isolados das três bactérias encontradas nas fezes dos cães que ingerem carne crua revelaram-se multirresistentes à ação de antimicrobianos. “Isso significa que foram resistentes a mais de três classes entre as 12 bases de antimicrobianos utilizadas para tratamento de infecções, o que reduz as possibilidades de tratamento em caso de infecção. E os cães são tratados com os mesmos antimicrobianos para humanos”, observa.

Descoberta

Os pesquisadores analisaram as fezes de 60 animais que se alimentam de carne crua e de 192 que comem ração. Os resultados confirmaram a presença de Salmonella spp, uma das zoonoses mais prevalentes no mundo e fator de risco comprovado, desde o início da década, por vários estudos internacionais. No entanto, os pesquisadores foram surpreendidos pelo número 28 vezes maior de Salmonella excretada pelos cães que comem carne crua em relação aos que se alimentam de ração. “Além disso, todos os isolados encontrados, ou sorotipos caracterizados dessa bactéria, estão entre os cinco mais comuns causadores de doenças em seres humanos”, alerta Rodrigo Otávio Silva.

A descoberta inédita de Escherichia coli patogênica e Clostridium difficile nas excreções dos cães também é avaliada com preocupação pelo pesquisador. “A E. coli é comumente encontrada no trato gastrointestinal de animais e humanos e, eventualmente, pode causar danos semelhantes aos provocados pela Salmonella. Mas nesse grupo de cães, os isolados de E. coli mostraram-se potencialmente mais danosos e mais resistentes aos antimicrobianos.”

Outro fator preocupante é que, entre os entrevistados que não oferecem ração para seus cães, 30% declararam que, na mesma casa que abriga o cão, também reside pelo menos uma pessoa do grupo de alto risco de contaminação pelos patógenos – crianças menores de cinco anos, idosos, gestantes, transplantados e imunossuprimidos, como portadores de HIV e lúpus.

Rodrigo Silveira Silva e Carolina Pantuzza Ramos: bactérias multirresistentes a antimicrobianos
Rodrigo Silveira Silva e Carolina Pantuzza Ramos: bactérias multirresistentes a antimicrobianos Foca Lisboa | UFMG

Ainda contrariando os estudos que comprovam os riscos dessa dieta, 60% dos entrevistados afirmaram que optaram pela carne crua há menos de um ano, o que indica tendência também verificada em outros países. Metade dos entrevistados que alimentam seus cães com ração afirmou ter interesse em trocar essa dieta por carne crua.  

O professor também chama a atenção para a dificuldade de  evitar a contaminação, uma vez que o hábito de lambedura, típico dos cachorros, contribui para disseminar os patógenos. “A contaminação por essas fezes infectadas nem sempre ocorre de forma direta. Mas o cão, ao lamber o próprio ânus, as patas, os seus donos, ou entrar na casa, deitar na cama ou no sofá, transporta essas bactérias”, exemplifica o professor.

Teresa Sanches