Utopia ecológica

‘Transições democráticas tendem a manter os privilégios das elites’

Convidado do programa Cátedras Fundep/IEAT, professor da Universidade de Lisboa fala sobre modelos de justiça de transição e os legados dos regimes autoritários do século 20

Nesta semana o senhor ministra conferência na UFMG sobre Os legados das transições democráticas. O que significa justiça transicional e legados autoritários? A expressão “justiça de transição” diz respeito a qualquer transição entre regimes políticos ou se refere especificamente à transição de um regime autoritário para um regime democrático?
Costa Pinto - A investigação sobre mudanças de regime, e particularmente sobre transições para a democracia, tem usado, cada vez mais, o conceito de legados autoritários. Embora seja muito difícil medir o impacto de um legado, e poucos acadêmicos utilizem definições explícitas do que constitui um “legado”, alguns enfatizam as características institucionais e estruturais, enquanto outros sublinham os padrões comportamentais. O cientista político Grigore Pop-Eleches definiu legados “como os pontos de partida estruturais, culturais e institucionais de uma ditadura ex-comunista (ou – pode-se acrescentar – qualquer ditadura) no princípio de uma transição”. Um problema importante aqui é como destrinçar legados específicos dos regimes autoritários anteriores de legados históricos tout court, uma vez que o que se encontra no armário quando as transições abrem as portas das ditaduras é muito mais do que autoritarismo. Num esforço pioneiro para compreender as ligações entre legados autoritários de direita e a qualidade da democracia consolidada, [as cientistas políticas] Paola Cesarini e Katherine Hite os definem como “todos os padrões comportamentais, regras, relações, situações sociais e políticas, normas, procedimentos e instituições quer introduzidos quer claramente reforçados pelo regime autoritário imediatamente anterior” que sobrevivem à mudança de regime, argumentando que as três variáveis-chave são a estabilidade do regime autoritário anterior, a inovação institucional desse regime e o modo de transição. Em outras palavras, quanto mais estável e institucionalmente inovador [é] o regime autoritário, maior a potencial influência de legados autoritários; quanto mais privilegiados [são] os responsáveis autoritários no modo de transição do poder autoritário, maior a potencial influência de legados autoritários.

Mural atribuído a Banksy, em Lisboa, alusivo à Revolução dos Cravos de 1974
Mural atribuído a Banksy, em Lisboa, alusivo à Revolução dos Cravos de 1974Pasquale Paolo Cardo | CC BY 2.0

E onde entra a justiça de transição nesse processo?
Costa Pinto - A justiça de transição envolve uma série de medidas tomadas durante o processo de democratização, as quais vão para além da mera criminalização da elite autoritária e dos seus colaboradores e agentes repressivos e implicam igualmente uma grande diversidade de esforços extrajudiciais para erradicar o legado do poder repressivo anterior, tais como investigações históricas oficiais sobre a repressão dos regimes autoritários, saneamentos, reparações, dissolução de instituições, [instauração de] comissões da verdade, entre outras medidas. Nos últimos anos, tanto no mundo das ciências sociais como nos think tanks dos profissionais da reconciliação, o conceito perdeu parte do seu rigor e adquiriu certa elasticidade, ao ponto de se associar a todas e a cada uma das decisões – sejam elas punitivas, de reconciliação ou ambas as coisas, respeitantes ao passado autoritário e/ou injustiças passadas – que uma democracia ou instituição internacional procura impor. Contudo, como conjunto de atitudes e decisões relativas ao passado autoritário, a justiça de transição é, ao mesmo tempo, uma consequência e uma parte de um processo de mudança de regime. Assim, a bem da clareza conceitual, deveríamos ligar justiça de transição com democratização; deveríamos situá-la exclusivamente em processos de transições democráticas, como sublinhou [a jurista] Ruti G. Teitel. A justiça de transição é componente de um processo de mudança de regime, cujas diferentes facetas são parte desse processo incerto e excepcional que tem lugar entre a dissolução do autoritarismo e a institucionalização da democracia. Considero a justiça de transição como ponto de partida de uma “política do passado” mais ampla, inerente às democracias liberais: um processo em desenvolvimento, no âmbito do qual as elites e a sociedade reveem, negociam e por vezes se desentendem relativamente ao significado do passado autoritário e das injustiças passadas, em termos daquilo que esperam alcançar na qualidade presente e futura das suas democracias.

Espanha e Brasil constituíram exemplos de casos em que seções da direita, que tinham estado associadas, respectivamente, ao franquismo e à ditadura brasileira, controlaram em grande parte o ritmo da transição política.


Que medidas um processo de justiça transicional precisaria contemplar para que pudesse ser considerado satisfatório, tendo em vista o interesse de um país em se estruturar em uma democracia funcional?
Costa Pinto - O controle das elites sobre a determinação do tempo de transição e a grande continuidade de elites políticas ao longo do processo de transição levam transições “por transação”, ou transições “contínuas”, a evitar, em geral, a punição ou saneamento das elites autoritárias. Isso constitui, no entanto, apenas uma faceta, uma vez que, a par de transições simplesmente “impostas” por elites governantes, as transições “pactuadas”, desde 1974, ultrapassaram em número as formas historicamente mais comuns de transição democrática. Mas os tipos de “justiça de transição” foram muito variados. Em trabalhos anteriores, abordei os criminais, históricos, reparadores, administrativos, institucionais e até uma modalidade mais rara, a redistributiva, que implica nacionalização e expropriações de elites econômicas e sociais colaboracionistas com as ditaduras. O que vale a pena destacar é um problema que tanto as transições pactuadas quanto as impostas partilham: ambas têm a tendência de manter inalterados “privilégios existentes” em vários domínios.

Quais as principais diferenças dos processos transicionais experimentados por Brasil e Portugal?
Costa Pinto - Portugal e Brasil foram dois casos do tipo oposto de democratização, mas os processos de transição democrática nos proporcionam, desde 1945, uma vasta panóplia de exemplos de punição de elites autoritárias. A criminalização e dissolução dos partidos e a suspensão temporária dos direitos políticos [dos representantes do antigo regime], como nas democracias que foram estabelecidas depois da Segunda Guerra Mundial, ou em Portugal em 1974, poderiam ser um dos polos no espectro de punição. Espanha e Brasil ficaram no lado oposto, constituindo exemplos de casos em que seções da direita, que tinham estado associadas, respectivamente, ao franquismo e à ditadura brasileira, controlaram em grande parte o ritmo da transição política, e a elite – que estava associada com o regime anterior – manteve um nível elevado de poder dentro do regime democrático subsequente, nomeadamente em novos partidos de direita. No caso do Brasil, por exemplo, quase metade da classe política pós-transição tinha apoiado o regime militar durante 20 anos. A situação era semelhante a algumas das transições democráticas que ocorreram na Europa Central e do Leste, onde setores muito significativos da elite, e até dos partidos comunistas no poder, sobreviveram – em alguns casos, não abdicando das suas convicções; em outros, transformando-se em sociais-democratas moderados. Isso surpreendeu muitos observadores contemporâneos, apesar de já existir o exemplo da queda das ditaduras de direita nos anos 1970 e 1980 para demonstrar a que ponto essas elites conseguem adaptar-se com êxito a uma nova democracia.

Como se deu a transição portuguesa?
Costa Pinto - No caso português, que foi um processo de democratização por ruptura e crise do Estado, com características pré-revolucionárias, algo muito raro na terceira onda de democratizações, o processo de justiça de transição afetou as instituições, a elite, os funcionários públicos e até o setor privado. A democratização portuguesa caracterizou-se por uma forte ruptura com o passado, facilitada pela crise de Estado e pela radicalização política, enquanto a nova elite política e a sociedade civil pressionavam para a punição e responsabilização. A maior parte das medidas punitivas contra os colaboradores mais visíveis e conhecidos foi tomada antes do estabelecimento das instituições democráticas recém-legitimadas, e o poder judicial teve um papel menor. Isso incluiu a criminalização do aparelho repressivo, sobretudo a polícia política, uma forte denúncia pública da ditadura, depurações legais, a dissolução de instituições, depurações “selvagens” e a demissão de administradores de empresas privadas, uma ação simbólica e efetiva. Uma forte onda anticapitalista marcou a transição portuguesa.

É possível estabelecer uma relação diretamente proporcional entre a justiça de transição que os países implementaram e a qualidade das democracias que experimentam no presente?
Costa Pinto - Uma das hipóteses – muitas vezes mais afirmada que demonstrada – que inicialmente dominou a literatura sobre democratização é a de que a sobrevivência e a reconversão de importantes segmentos das elites autoritárias e a impunidade daqueles que no regime anterior estavam mais ativamente envolvidos na repressão tiveram um impacto pesado na qualidade das democracias pós-autoritárias. [O cientista político] Philippe C. Schmitter afirmou que “é difícil imaginar como uma sociedade pode regressar até um nível de funcionamento que daria apoio social ideológico para a democracia política sem, de certo modo, enfrentar os elementos mais penosos do seu próprio passado”.

Considero a justiça de transição como ponto de partida de uma “política do passado” mais ampla, inerente às democracias liberais: um processo em desenvolvimento, no âmbito do qual as elites e a sociedade reveem, negociam e por vezes se desentendem relativamente ao significado do passado autoritário

O que representa, para uma nova democracia, herdar do regime autoritário anterior uma parte significativa da sua classe política?
Costa Pinto - A continuação de parcelas significativas da elite política e da administração pública autoritárias no novo regime pode ter importantes repercussões numa nova democracia, que fica provida de uma elite cuja lealdade ao novo regime democrático é duvidosa, o que leva, por sua vez, a uma falta de confiança nas novas instituições. Isso também mina o apoio social ao novo regime, tendo como resultado um sentimento geral de desconfiança relativamente às elites políticas, às instituições e ao Estado como um todo, por serem identificados com o autoritarismo e a repressão anteriores. Outra dimensão, muitas vezes subestimada na investigação, é a da construção, pelas novas democracias, de uma memória coletiva dominante da ruptura com o passado. Como observa [a cientista política] Alexandra Barahona de Brito, ao se estabelecer uma ruptura moral e política com um passado não democrático e repressivo – cuja marca essencial é mudar os limites e padrões de inclusão e exclusão social e política –, a voz das vítimas é legitimada, a repressão é condenada, os democratas tornam-se os novos vencedores, e os antigos opressores, párias. A legitimação democrática leva tempo, e essa “legitimação invertida” pode ajudar a estabelecer uma quebra clara com o passado, como salientou o [cientista político] latinoamericanista Arturo Valenzuela.

António Costa Pinto: continuação das elites autoritárias gera desconfiança nas instituições
António Costa Pinto: continuação das elites autoritárias gera desconfiança nas instituições Arquivo Pessoal

Ewerton Martins Ribeiro