Ética forjada no condado arenoso
Editora UFMG lança no Brasil clássico de Aldo Leopold, filósofo ambiental que é referência internacional no campo da conservação e da preservação
A terra
Em agosto, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) detectou quase 40 mil focos ativos de queimadas na Amazônia legal, número que é mais do que o dobro do registrado no mesmo mês de 2018. Como no Brasil a quase totalidade das queimadas é causada pelo homem, e uma das principais razões para o fogo é o desmatamento, as imagens da floresta em chamas revoltaram aqueles que se preocupam com a preservação do seu mais importante bioma.
É nesse contexto que a Editora UFMG traz para o mercado brasileiro o livro Almanaque de um condado arenoso e alguns ensaios sobre outros lugares, do filósofo ambiental estadunidense Aldo Leopold (1886-1948), obra seminal da área de ecologia e conservação. Traduzido por Rômulo Ribon, professor da Universidade Federal de Viçosa e doutor em ecologia, conservação e manejo da vida silvestre, o livro é marcado por uma crítica ao antropocentrismo e ao caráter devastador das intervenções humanas sobre os ecossistemas. “Descontando-se as particularidades da história, geografia e espécies da fauna e da flora norte-americanas, o livro se aplica a qualquer situação do mundo – inclusive à nossa, brasileira”, afirma o tradutor.
O homem
Segundo Rômulo Ribon, a despeito de ser hoje um dos ambientalistas mais lidos em todo o mundo, Aldo Leopold é ainda pouco conhecido dos brasileiros. Para o tradutor, seu livro ora publicado pela Editora UFMG é – ao lado de Primavera silenciosa, de Rachel Carson (1907-1964) – a mais importante obra do pensamento conservacionista, preservacionista e ambientalista do século 20. “A importância dele é crucial. Aldo Leopold foi o primeiro professor de Manejo de Fauna e autor do primeiro livro sobre o assunto, nos Estados Unidos. Ele atuou em vertentes da conservação, da preservação das vastidões selvagens (as grandes áreas selvagens protegidas pela sociedade para as gerações futuras) e de espécies ameaçadas, das causas e consequências das atividades ao ar livre, da preservação de espécies ameaçadas de extinção, da conservação dos solos e das águas, entre tantas outras”, explica. Além disso, “foi um professor paciente e com alto rigor científico, que fazia questão de levar seus alunos para aulas de campo”.
Publicado pela primeira vez em 1949, Almanaque de um condado arenoso revolucionou o pensamento sobre a preservação e conservação do meio ambiente em seu tempo, tornando-se referência incontornável para a legislação ambiental de vários países e peça fundamental para o desenvolvimento da ética ambiental moderna, devido a seu enfoque no uso racional dos recursos naturais e na defesa de se estabelecer reservas naturais.
Segundo Rômulo Ribon, é de Aldo Leopold que vem a distinção entre preservação (como abdicação do uso) e conservação (como uso racional e sustentável) da natureza, ideias hoje absolutamente correntes na área. “A conservação é o uso racional de um recurso natural renovável e visa também ao bem-estar humano, seja através do lazer, da geração de emprego e renda, seja através do controle de espécies que, tendo o potencial para tal, podem se tornar pragas. Já a preservação é o ‘não uso’ ou o uso apenas contemplativo”, explica. “É o que ocorre, por exemplo, em muitas unidades de conservação do Brasil, como em nossos parques nacionais e estaduais. Uma complementa a outra, e elas devem ser compatíveis com diferentes visões de mundo e da natureza”, diz.
Na opinião do tradutor, ambas demandam ciência, paixão, visão de futuro “e mesmo um pouco de ousadia por parte do indivíduo e dos governos”. Sobre essa ousadia, Rômulo lembra que, em seu livro, Aldo vai defender que é impossível preservar a natureza sem incluir os produtores rurais nesse processo. “Apesar do respeito que tinha no meio acadêmico, Aldo Leopold sempre teve uma excelente relação com os produtores rurais. Ele entendeu muito bem que os governos (federal, estaduais e municipais), sozinhos, jamais conseguiriam fazer a conservação da base de recursos naturais do país”, lembra o tradutor. Na esteira desse pensamento, Rômulo destaca que “várias espécies da nossa fauna, que foram praticamente extintas em muitos locais, poderiam hoje estar sendo perfeitamente manejadas por proprietários rurais, isoladamente ou em cooperativas”. Contra um pensamento simplista no âmbito da preservação do meio ambiente, Ribon cita o caso da caça amadorística, uma paixão de Aldo Leopold. “Praticada em quase todo o mundo, ela ajuda na conservação e gera empregos para profissionais de várias áreas”, afirma o tradutor, que garante: “apenas artigos científicos de alto impacto e startups farão pouca diferença na nossa base de recursos naturais e na forma como o brasileiro lida com a terra.”
A luta
Na primeira parte do seu livro, Aldo Leopold relata cronologicamente e interpreta acontecimentos vividos por ele e sua família em seu “condado arenoso”, sítio em que descobria e enfrentava, na prática, os desafios da restauração da natureza, com o plantio de árvores e plantas herbáceas nativas das pradarias que outrora dominaram a região. Na segunda, o autor reflete sobre diferentes locais por onde viajou, especialmente o sudoeste dos Estados Unidos e o oeste e o norte de Wisconsin, próximo à divisa com o Canadá.
Em sua parte final, a obra, ilustrada por Charles W. Schwartz, é dedicada à reflexão teórica. Nela, o autor “condensa sua experiência de campo, seu embasamento científico, sua maturidade intelectual e sua percepção ambiental em textos de ordem prática e filosófica”, diz o tradutor. É nessa parte em que figura, por exemplo, o texto A ética da terra, no qual Leopold convoca o homem a lidar com a terra assim como lida com os seus semelhantes (em se considerando, claro, aqueles homens que tratam com dignidade os seus demais). “Em ‘A ética da terra’, Aldo vai fundo na questão humana fundamental do convívio harmonioso com a terra e com a Terra. Em um país com uma população cada vez mais urbana e em crescimento [como o Brasil], precisamos muito de Aldo Leopold”, convoca Ribon.
“A FLORESTA ACABOU”
Recentemente, o escritor amazonense Milton Hatoum participou na UFMG do projeto Encontro marcado, evento que, realizado mensalmente pelo Acervo de Escritores Mineiros, promove conversas de grandes escritores brasileiros com a comunidade universitária. Na ocasião, Hatoum falou sobre a sua preocupação com o desmatamento da Amazônia. “É uma loucura você pensar que a floresta está sendo derrubada para [a exploração de] soja, gado, madeira. É uma loucura, mas é o que está acontecendo sistematicamente”, lamentou.
“O fato é que, no sul do Pará, a floresta acabou”, disse o escritor. “Existem manchas [de floresta]: o Xingu, a reserva indígena, mas o centro-sul do Pará, os estados de Rondônia, do Mato Grosso são regiões em que a floresta foi de fato destruída. E isso começou nos anos 1970”, lembrou, acusando o legado danoso da ditadura para o meio ambiente. “Ali, quem estava interessado na Amazônia já percebia que esse seria um processo irreversível.” Hatoum também salientou o caráter abrangente dos prejuízos causados pelas queimadas. “Quando se fala na Amazônia, não se pode falar só da floresta. Você tem de associar a destruição das queimadas à vida – inclusive, à vida das pessoas. É a vida das pessoas que está em jogo”, disse.
Publicado pela primeira vez em 1949, 'Almanaque de um condado arenoso' revolucionou o pensamento sobre a preservação e conservação do meio ambiente em seu tempo, tornando-se referência incontornável para a legislação ambiental de vários países e peça fundamental para o desenvolvimento da ética ambiental moderna
O argumento do escritor amazonense remete à descrição que Aldo Leopold fez em seu Almanaque de um condado arenoso do processo de destruição das grandes florestas de pinheiro no Norte do estado de Wisconsin, nos Estados Unidos. Nesse capítulo, escreve o tradutor Rômulo Ribon, “tem-se um reflexo perfeito, embora não tão rápido naqueles tempos, como se tem hoje da destruição da Amazônia e do cerrado brasileiros. Ocorreu lá e agora ocorre aqui, ao menos em muitas áreas da Amazônia, a fase do ‘corta e vai embora’.”
Em razão de paralelos como esse, a obra de Aldo Leopold – que foi escrita na primeira metade do século 20 – “permanece atualíssima”, segundo seu tradutor. Na verdade, considerando-se o desmatamento que assola o Brasil, talvez permaneça, para a nossa tristeza, ainda “à frente do nosso tempo”: “Parece que nosso país, em comparação com os Estados Unidos, é não apenas 100 anos mais jovem em termos de democracia, mas também cerca de 100 anos mais jovem em termos de conservação da natureza”, escreve Rômulo Ribon.
Livro: Almanaque de um condado arenoso e alguns ensaios sobre outros lugares
Autor: Aldo Leopold
Tradutor: Rômulo Ribon
Ilustrações: Charles W. Schwartz
Editora UFMG
286 páginas / R$ 59