A ética dos arquivos
Editora UFMG lança livro sobre tensão entre o direito à privacidade e o direito de acesso à informação no uso de documentos públicos
O inciso X do artigo 5º da Constituição Brasileira é claro: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.” Contudo, é de igual clareza o inciso XIV: “É assegurado a todos o acesso à informação.” A relação conflituosa entre esses dois direitos – o direito de acesso à informação e o direito à privacidade – está no cerne do livro Sem consentimento: a ética na divulgação de informações pessoais em arquivos públicos, que acaba de ser lançado no Brasil pela Editora UFMG.
Publicado originalmente em inglês, em 1992, o livro de Heather MacNeil, professora da Faculdade de Informação da Universidade de Toronto, no Canadá, tem, na tensão entre esses dois direitos fundamentais, o ponto de partida para a sua investigação teórica, que se interessa particularmente pelo papel de guardião que o arquivista exerce – um papel de “arconte”, para citar o termo apresentado pelo professor da Faculdade de Letras Reinaldo Marques, no livro Arquivos literários: Teorias, histórias, desafios.
“Os arquivistas, como especialistas dos arquivos, figuram como mediadores dessa informação, assumindo responsabilidades diante dos produtores de documentos, mas também se apresentando zelosos do direito à privacidade e dos direitos dos cidadãos ao acesso às informações”, escreve a historiadora Georgete Medleg Rodrigues, professora do curso de arquivologia da Universidade de Brasília (UNB), na introdução à versão em português do livro de Heather MacNeil.
Precário equilíbrio
MacNeil trata de temas como a vigilância governamental, a evolução das tecnologias de informação e comunicação, a internet e a captação privada de informações pessoais, as legislações estadunidense e canadense relativas aos arquivos, o “direito ao esquecimento”, as leis de acesso à informação e suas implicações para o direito à privacidade e o papel dos arquivos na defesa dos direitos humanos (transparência administrativa, responsabilidade democrática, preservação das memórias individual e coletiva etc.), entre outros assuntos.
“Parte do preço que pagamos para ser parte da comunidade é o sacrifício de algum grau de privacidade.”
Para a autora, a tarefa de contrabalancear perspectivas contraditórias continua sendo um desafio para o arquivista, considerando o seu papel de custodiador público de documentos. “Os esforços dos arquivistas para desenvolver políticas e procedimentos que reflitam um equilíbrio apropriado entre a privacidade e os interesses de pesquisa têm sido impedidos por vários fatores, entre os quais, estão: a pletora de restrições legais e administrativas que silenciam ou são ambivalentes quanto à questão do acesso para propósitos de pesquisa, a complexidade tecnológica dos ambientes de guarda de documentos e, talvez o mais debilitante, a ausência geral de autoridade do arquivista (tanto autoimposta como determinada externamente) para tomar decisões relativas ao acesso no caso de se tratar de documentos contendo informações pessoais, especialmente informações pessoais sensíveis.”
Com esse desafio em vista, a autora apresenta, no último capítulo do livro, as suas propostas de gestão do acesso às informações pessoais em arquivos públicos. “Parte do preço que pagamos para ser parte da comunidade é o sacrifício de algum grau de privacidade”, escreve MacNeil. “O problema torna-se, então, o de contrabalancear os seguintes fatores: a reivindicação do indivíduo à privacidade, a pretensão do Estado em regular a conduta para o bem coletivo, a reivindicação de outros indivíduos para exercer seus direitos legítimos e a necessidade do próprio indivíduo de participar de comunidades mais amplas”, conclui a autora