No território comum

Divulgar, divulgar, divulgar...

Nos últimos 15 anos, a divulgação científica vem ressurgindo de forma expressiva na UFMG. Com o estímulo de editais de financiamento na área, surgiram várias iniciativas e projetos no âmbito da extensão e pesquisa. Instituíram-se a Diretoria de Divulgação Científica, a Formação Transversal e a Especialização e o Fórum de Divulgação da Cultura Científica. O envolvimento da comunidade acadêmica vem crescendo, e a UFMG passa a fazer parte do INCT Comunicação Pública da Ciência e de sociedades nacionais e internacionais na área. 

Essa ânsia de divulgar, divulgar, divulgar suscita algumas perguntas: que divulgação científica queremos na UFMG e em outras instituições de ensino e pesquisa? Qual se faz necessária no contexto atual? Que ciência queremos ou devemos divulgar? Uma ciência tecnicista, que invisibiliza os interesses econômicos e políticos que influenciam a sua produção? Uma ciência universal que desconsidera as singularidades e os contextos locais? Ou uma ciência cheia de maravilhas, mas também de controvérsias e contradições? Essa ciência que, ao intervir na natureza e na sociedade, buscando maior eficiência, é necessariamente carregada de riscos muitas vezes invisibilizados. 

Divulguemos os benefícios da ciência no campo das nanotecnologias, da bioinformática, da genética molecular, das doenças infecciosas, no planejamento de novas drogas e vacinas, no avanço das comunicações e dos meios de transporte, mas nos adentremos também nos casos históricos da talidomida, das mortes por agrotóxicos, das perdas de biodiversidades e nas transformações sociais e culturais nem sempre positivas que emergem com a introdução de novas tecnologias. 

O momento urge por uma visão mais reflexiva e crítica sobre ciência, sobre divulgação científica e sobre as relações entre ciência e sociedade. 

Em tempos de fake news, a divulgação científica vem sendo tratada como “cura” para todos os males – panaceia que vem nos salvar da ânsia, da ignorância e dos terrores da antidemocracia, versão 6.0 de um iluminismo que vê a ciência e tecnologia como salvação, quiçá, redenção. Será isso mesmo? Divulguemos também as fragilidades da ciência e suas limitações na resolução de problemas que nos afligem. O momento urge por uma visão mais reflexiva e crítica sobre ciência, sobre divulgação científica e sobre as relações entre ciência e sociedade. 

A ciência e os cientistas estão sob ­ameaça. Divulgamos ciência para “provar” para a sociedade, para as agências de financiamento e até para nós mesmos que fazemos ciência e que fazer ciência no Brasil ainda vale a pena. Então, fazemos (meio sem saber direito para que serve nem com quem queremos falar) vídeos, blogs, podcasts, cartazes, pitches, palestras ad nauseam. Lotamos os sites institucionais de resultados de pesquisas e esquecemos que divulgar é mais do que desenvolver produtos ou somente falar dos “meus resultados”. Trazemos a dita população para se assentar calada nos auditórios e nos escutar em explanações sem fim sobre temas científicos que nós, acadêmicos, consideramos relevantes. E assim seguimos, na torre de marfim, sem nem mesmo procurar saber o que é urgente e primordial para a sociedade. 

O griot (contador de história e guardião da tradição africana) Sotigui Kouyaté nos lembra que a pior coisa do mundo não é a doença ou a morte, mas a ignorância, como relatado por Isaac Bernat, no livro Encontros com o griot Sotigui Kouyaté

“Os ancestrais queriam saber qual era a pior coisa que poderia acontecer ao ser humano. E eles disseram rapidamente: a doença. Bom, eles tinham razão, quando estamos doentes não podemos fazer nada. Mas depois chegaram à conclusão de que não era a doença, mas a morte. Depois eles disseram: bem, não é a morte porque a ressurreição existe. Então continuaram  a procurar e finalmente disseram: é a ignorância. Então todos concordaram. Mas agora eles precisavam descobrir quem seria o mais ignorante de todos. Então, eles chegaram à conclusão de que o mais ignorante de todos é aquele que não foi ao encontro dos outros.”

Divulgar ciência é também sair desse estado de ignorância e distanciamento que a vida acadêmica nos impõe e ir ao encontro dos outros. É ir além do gigantesco muro da academia. Ousar escalar esse muro criado ao longo da história por nós mesmos e navegar em horizontes desconhecidos e/ou esquecidos. 

Divulgar é conversar sobre ciência, sim, mas é também escutar outras falas, dialogar, conhecer demandas inimagináveis para ensinar aprendendo. Dialogar com quem tem sido designado a ficar calado, com esse outro, com esse “público alvo” que insiste em questionar nossas certezas.

O caminho é longo, e a UFMG optou por percorrê-lo: lançou o Fórum de Cultura Científica, criou a Formação Transversal e a Especialização, ambas de caráter multi, inter e transdisciplinar, traços inerentes da divulgação científica. Há de se manter nesse caminho, sempre com firmeza, investimento pessoal e financeiro, criatividade e esperança. O momento atual requer o esforço de um fazer reflexivo, crítico e atento. Requer a criação e/ou ampliação de redes intra e interinstitucionais, que possibilitem encontros, que ampliem e diversifiquem os diálogos. 

Gabriel Perissé faz um resgate etimológico da palavra “divulgar”. A partícula latina dis- indica variedade de direção e dispersão; o verbo vulgare significa “espalhar”, “publicar”. Ao divulgar, lançamos em todas as direções uma ideia, uma mensagem, uma palavra. Vamos abrir espaços para as palavras ressoarem, para encontros. É tempo de nos unirmos, acadêmicos e não acadêmicos, para compartilharmos conhecimentos que nos conduzam a um mundo mais justo e com mais escuta. Mais do que incluir, sejamos (re)integrados para lutar por uma divulgação que realmente queremos. 

Versão resumida deste artigo foi publicada no jornal Folha de S. Paulo, em 19/01/2020.

Débora d’Ávila Reis - Professora do ICB e diretora de Divulgação Científica da UFMG; Denise Nacif Pimenta - Pesquisadora do Instituto de Pesquisas René Rachou da Fiocruz