Procura-se a molécula
Pesquisa de professora do ICB busca, em meio a uma vasta população de componentes do 'Trypanossoma cruzi', a substância que poderá servir de base para o tratamento da cardiomiopatia chagásica
Nas populações de células T duplo-negativas (T DN), conhecidas pela importante produção de citocinas imunorreguladoras (moléculas controladoras da resposta imune) em doenças infecciosas, pode estar a chave para prever, prevenir e tratar a cardiomiopatia chagásica crônica – doença inflamatória do coração, progressiva e sem cura, causada pelo protozoário Trypanossoma cruzi, que afeta cerca de seis milhões de pessoas no mundo e é responsável pela morte de 12 mil por ano.
Projeto de pesquisa liderado pela professora Walderez Ornelas Dutra, do Departamento de Morfologia do ICB, em parceria com o professor Igor Almeida, da Universidade do Texas em El Paso (Utep), Estados Unidos, está investigando qual molécula, entre os milhares de componentes antigênicos da superfície celular do T. cruzi, é a responsável pela ativação das células T DN. “A descoberta de uma molécula do parasito que ativa essas células vai possibilitar o desenvolvimento de um análogo capaz de inibir, de forma específica, a atividade inflamatória das células T DN, alterando um perfil inflamatório para um perfil anti-inflamatório em pacientes chagásicos cardiopatas”, revela a professora.
Estudos anteriores, também coordenados pela professora Walderez, concluíram que as células T DN apresentam respostas diferentes para grupos clínicos distintos: em pacientes chagásicos cardiopatas, esse grupo celular desencadeia a produção de citocinas inflamatórias. No entanto, em pacientes indeterminados (infectados, mas sem sinais de doença clínica), são produzidas citocinas anti-inflamatórias.
Os pesquisadores também avaliaram se a molécula genérica utilizada para inibir a reatividade inflamatória das células T DN não alteraria a função de outras células imunes, o que poderia comprometer a defesa do paciente a outros parasitos, bactérias, vírus ou fungos.
“Esse estudo das células T DN em doença de Chagas começou há alguns anos, em colaboração com a saudosa professora emérita Conceição Machado, que identificou a produção de citocinas inflamatórias por células T DN em ratos infectados pelo protozoário. Investigamos o comportamento desse grupo celular na doença de Chagas em humanos. Agora, demos mais um passo, ao descobrir que, entre os milhares de componentes do T. cruzi, os glicoconjugados, especificamente os glicolipídios, são os principais responsáveis pela ativação das células T DN na doença de Chagas, associada predominantemente a um perfil inflamatório nos cardiopatas, mas não inflamatório nos indeterminados”, relata a professora.
Fase indeterminada
Segundo Walderez Dutra, o grande problema da cardiopatia chagásica é que não se consegue detê-la. Mais da metade das pessoas infectadas pelo protozoário – por contato com as fezes ou a urina do inseto vetor (barbeiro) contaminado, de forma congênita, por transfusão de sangue, transplante de órgãos ou por alimentos e sucos contaminados – não apresentam sintomas. No entanto, em um terço delas, as células imunológicas participam do desenvolvimento da cardiomiopatia, seja pela destruição direta dos tecidos, seja pela inflamação, cuja progressão varia entre os pacientes, que apresentam sintomas graves como insuficiência cardíaca, trombose e arritmias ventriculares, com alto risco de morte súbita.
“O ideal seria prevenir a infecção, mas encontrar a molécula responsável por desencadear essa inflamação traz a esperança de um tratamento que impeça sua progressão, o que beneficiaria, de imediato, 30% dos pacientes chagásicos no mundo, além dos outros 70% de pacientes indeterminados, mas que podem desenvolver a doença”, afirma.
Os pesquisadores também avaliaram se a molécula genérica utilizada para inibir a reatividade inflamatória das células T DN não alteraria a função de outras células imunes, o que poderia comprometer a defesa do paciente a outros parasitos, bactérias, vírus ou fungos. A professora explica que uma das preocupações de sua equipe foi verificar se, ao manipular as células T DN, outras células imunes não sofreriam alteração. Os estudos do grupo mostraram que é possível manipular a ativação das células T DN sem alterar as demais células, preservando o sistema imunológico.
O sucesso do estudo resultou em subsídio de cerca de R$ 2 milhões do National Institutes of Health (NIH), dos Estados Unidos, para prosseguimento da pesquisa. O trabalho é feito no âmbito do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Doenças Tropicais (INCT-DT), financiado pelo CNPq.
Doença endêmica
A transmissão vetorial, pelo contato com as fezes e/ou urina do inseto vetor contaminado (triatomíneo de 12 espécies diferentes, conhecido como “barbeiro”), ainda é a principal forma de contaminação pela doença, embora tenha diminuído em países como Brasil, Chile e Uruguai. Entretanto, no Chaco, região ecológica entre Bolívia, Argentina e Paraguai, a infecção chega a 80% entre adultos e 20% em crianças.
Endêmica da América Latina, a cardiopatia chagásica ou tripanossomíase americana já afeta indivíduos em países da Europa, no Japão, na Austrália, no Canadá e nos Estados Unidos.
Também integram o grupo de pesquisa a professora Maria do Carmo Pereira Nunes, da Faculdade de Medicina, o chefe do Grupo de Imuno-oncologia Translacional do AC Camargo Câncer Center, de São Paulo, Kenneth Gollob, e a professora Rosa Maldonado, da Universidade do Texas em El Paso, além de estudantes de graduação e de pós-graduação vinculados à UFMG.