Das fogueiras do autoritarismo às marcas do descaso
"Quem não carrega dentro de si as sementes do demoníaco nunca fará nascer um novo mundo”. O mesmo leitor voraz, Adolf Hitler, que teria sublinhado essa frase em um exemplar do livro Magie: geschichte, theorie, práxis, de Ernst Schertel, iniciou, durante o nazismo, intensa perseguição à cultura, que resultou na queima de centenas de milhares de livros. Pouco mais de um século antes desse lamentável episódio da história da humanidade, o poeta alemão Heinrich Heine já prenunciava que “aqueles que queimam livros, acabam cedo ou tarde por queimar homens”.
“Aqueles que queimam livros, acabam cedo ou tarde por queimar homens”
Fato é que, desde a antiguidade, a destruição dos livros, em suas diversas formas – tabletas, papiros, pergaminhos –, sempre esteve presente, e, de maneira geral, relaciona-se ao autoritarismo, à negligência e à tentativa de aniquilar o conhecimento.
Ao estudar a censura no período dos “anos de chumbo” no Brasil, a autora Sandra Reimão, no livro Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar, constatou que, de uma lista de quase 500 livros submetidos à Divisão de Censuras de Diversões Públicas (DCDP), cerca de 140 eram de autores nacionais, dos quais 70 foram proibidos. Entre eles, romances e contos de Rubem Fonseca e de Inácio de Loyola Brandão. Já a ditadura Vargas incinerou, em praça pública, mais de 1,6 mil exemplares de Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado.
A “queima” de livros se perpetua por meio de diversas formas de censura e guerras. Em 2014, quando tomaram a cidade iraquiana de Mossul, os militantes do Estado Islâmico, entre outras perdas irreparáveis para a humanidade, queimaram a biblioteca da Universidade. No ano seguinte, explodiram a Biblioteca Central de Mossul, construída em 1921, com seus milhares de manuscritos e instrumentos utilizados por cientistas árabes. E, até hoje, nos assombram ameaças, feitas por diversos grupos, de destruir as bibliotecas do Vaticano e do Congresso dos Estados Unidos.
O aniquilamento de livros é também abordado na literatura, como uma tentativa de espelhar o que vivenciamos ou de prever as drásticas consequências, caso as diversas formas de destruição continuem. Em Fahrenheit 451, Ray Bradbury revela um futuro assustador, no qual livros são proibidos na tentativa de suprimir o pensamento crítico. No romance, os bombeiros são, paradoxalmente, “queimadores de livros”, e 451 Fahrenheit é o grau da temperatura utilizada para se queimar as obras e as ideias dissidentes nelas contidas. O resultado disso é um mundo repleto de pessoas apáticas, sem opiniões e sem autonomia.
No romance O nome da rosa, Umberto Eco destaca, como ponto central da história, a tentativa da Igreja Católica, durante o período da inquisição, de ‘apagar’ o segundo livro da Poética, de Aristóteles, dedicado ao estudo da comédia. Essa obra se referia à sátira e ao riso como maneiras de purificar as paixões e os vícios. Esse pensamento chocava-se com a ideologia do catolicismo que relacionava o riso ao diabo. Temendo que a Igreja perdesse o “posto” de único remédio contra as fraquezas mundanas, e que o frei Guilherme de Baskerville se apoderasse do livro proibido, um dos monges teria envenenado suas páginas, causando inúmeras mortes no mosteiro. Desvendar a causa das mortes é o que sustenta a trama do romance, mas a proibição do livro de Aristóteles como mote da narrativa diz muito mais nas entrelinhas.
Na obra História universal da destruição dos livros, o escritor venezuelano Fernando Báez revela a suspeita de que o segundo volume da Poética, de Aristóteles, teria sido, diferentemente do que narra Umberto Eco, destruído pelo desleixo. Isso porque centenas de obras do filósofo grego teriam desaparecido após a morte repentina de Alexandre, o Grande, que zelava pela Biblioteca onde os exemplares se encontravam.
“Para sobreviver é preciso contar histórias”
De fato, a falta de cuidado é outra maneira de destruir os livros, ou ainda mais grave, os conhecimentos neles presentes. Diferentemente das guerras e censuras, muito mais difíceis de serem combatidas, a falta de cuidado pode ser evitada por meio da conscientização da importância de se preservar o conhecimento. É justamente isso que o Sistema de Bibliotecas da UFMG busca promover por meio da campanha Preservar não custa nada. O objetivo é mostrar aos usuários das bibliotecas da Universidade que, ao danificar o livro (físico), danifica-se o conhecimento (imaterial). Além disso, pretende-se mostrar que, se a falta de preservação custa muito caro para o Sistema de Bibliotecas – milhares de reais são gastos no reparo de obras –, preservar o livro, por sua vez, não custa nada.
A preservação ainda traz benefícios, como a possibilidade de aquisição de novos livros com o dinheiro economizado em recuperação. Preservar significa tomar pequenos cuidados, como evitar comer próximo aos materiais bibliográficos, não fazer grifos e/ou anotações nas páginas, utilizar marcadores de páginas apropriados, entre outras medidas divulgadas pela campanha. Tudo em nome da preservação do que de mais raro e precioso se encontram nas páginas dos livros: as histórias, as estórias e o conhecimento.
“Para sobreviver é preciso contar histórias”, já dizia Umberto Eco. Não contá-las, ou impedir que sejam contadas e perpetuadas, seria o aniquilamento, a destruição e a morte.
Carla Gomes Pedrosa - Jornalista e coordenadora da Divisão de Comunicação do Sistema de Bibliotecas da UFMG