Câncer e biomateriais: novas rotas

Saudade de tudo

Como repórter de um veículo da imprensa nacional, recebi, no ano passado, um e-mail do Centro de Comunicação da UFMG sugerindo a divulgação das atividades de comemoração dos 90 anos da instituição. A mensagem trazia um link para um hotsite, no qual estavam reunidos materiais preparados por ocasião da ilustre data. Nesse site, era possível assistir a  gravações com depoimentos de ex-professores cujas trajetórias se confundem com a história dessa relevante universidade pública brasileira. Finalmente, ao apertar despretensiosamente o play no primeiro vídeo, deparei-me com o Dr. Edgard Carvalho Silva, a quem me refiro como vovô.

“Se eu for falar com liberdade, tenho saudade de tudo.” A frase formulada por vovô para encerrar aquele depoimento martelou a minha cabeça por um bom tempo como se fosse de minha autoria. Por oito anos, a UFMG fez parte de minha vida. Formei-me comunicador social com habilitações em Jornalismo e em Radialismo. Lembro-me das aulas conduzidas por professores excepcionais, das confraternizações com os colegas, dos estágios realizados em assessorias de comunicação da própria Universidade, do intercâmbio que pude realizar por um semestre no exterior, da militância no movimento estudantil.

Assim como vovô, eu também tenho saudade de tudo, ou melhor, quase como ele, porque preciso reconhecer que me seriam necessárias mais umas boas décadas vivendo o dia a dia da instituição para ser capaz de alcançar a dimensão do seu sentimento. Dr. Edgard formou-se na Faculdade de Odontologia quando a UFMG ainda era UMG. A federalização veio anos depois, e, já sob a nova sigla, concluiu sua tese de doutorado e lecionou por 35 anos alcançando o título de professor emérito. Quando eu nasci, em 1986, vovô era diretor da Faculdade de Odontologia da UFMG. “Nunca tirei o pé de Belo Horizonte para estudar a especialidade que escolhi”, destaca ele no vídeo gravado para os 90 anos da Universidade.

Vovô se foi aos 95 anos no último dia 19. Foi-se deixando uma saudosa vovó Marina, poeticamente no mesmo dia em que completou com ela 67 anos de casados. Foi-se deixando emocionados nove filhos, 19 netos e 10 bisnetos. Mas também se foi deixando para todos nós as lembranças de um típico mineiro contador de “causos”. Típico por um lado e peculiar por outro, porque nas suas histórias a protagonista é quase sempre a odontologia, que despertou nele uma paixão inigualável.

Também nesses “causos”, revelava-se um homem simples, que, embora recebesse com gratidão todos os títulos e honrarias que lhe eram oferecidos Brasil afora, falava pouco ou nada dessas conquistas. O foco de suas histórias residia nas relações humanas, na gente que vinha de longe em busca de esperança, nas cirurgias complexas que devolviam saúde aos pacientes, nos alunos que lhe demonstravam afeto, nos professores que lhe abriram as portas em sua jornada. Considerava-se um felizardo por ter atuado com sucesso repetidamente em casos raríssimos.

Vovô nasceu em Prados, um pequeno município nas Minas Gerais que esconde belezas do ciclo do ouro e que todos nós, filhos e netos, aprendemos a amar. Segundo ele mesmo contava, escolheu sua profissão a contragosto da família e desembarcou em Belo Horizonte sem muito apoio. Na época, diante das intempéries relacionadas com a saúde bucal, recorria-se aos dentistas práticos, que atuavam sem qualquer formação acadêmica. Visionário, vovô percebeu que era questão de tempo até a atividade ganhar o devido reconhecimento. E acabou tornando-se um destacado especialista em cirurgia bucomaxilofacial, que trata de determinados defeitos e deformidades na face, de nascença ou causadas por doenças e traumatismos. Incluem-se aí implantes dentários, remoção de tumores faciais e correção de fraturas. Como jornalista, não sei explicar em detalhes os significados de certas expressões, mas cresci acostumado a ouvir vovô falar em “dentes inclusos” ou “lesões peripicais”.

Além dos muros da UFMG, vovô também abriu caminhos. Criou e presidiu o Conselho Regional de Odontologia de Minas Gerais (CRO-MG) e dirigiu a Associação Brasileira de Odontologia (ABO). Trabalhou até mais de 90 anos. Com quase 80, foi ele quem extraiu dois dos meus quatro sisos. Em momento algum da vida, pensou que já sabia o suficiente. Em sua casa, estava constantemente dentro do seu escritório em meio aos livros, fazendo o que mais lhe dava prazer: estudar. De vez em quando, um neto era convidado a ver slides fotográficos projetados na parede: imagens de pacientes com suas bocas abertas que ele apreciava como obras de arte.

O curioso é que, até recentemente, vovô nunca havia escrito um livro, embora tenha assinado diversos capítulos em obras importantes de outros dentistas. Boa parte de seu conhecimento foi disseminada somente pela oralidade na UFMG e em outras instituições onde lecionou ou proferiu palestras. Seu primeiro e único livro, Obstinação e sonho, saiu apenas há alguns meses, como um presente de aniversário especial no dia 24 de abril, quando completou 95 anos. Não é um livro científico, é um livro de memórias, mas – não poderia ser diferente – a odontologia é protagonista. Vovô escolheu tudo: o título, o tamanho da fonte, até a capa, onde exigiu uma foto em que vovó Marina estivesse presente. Cada página de leitura deixa, para seus familiares, uma certeza: a saudade de tudo!

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Léo Rodrigues / Jornalista formado pela UFMG e neto do professor Edgard Carvalho Silva