Inverno, aos 50

Escravidão contemporânea

O cenário de precarização das relações do trabalho no Brasil veio no bojo da perda do projeto socialista referendado na emancipação humana e na ascensão dos programas neoliberais na economia e na sociedade, na década de 1990. As mudanças, no campo gerencial e no parque industrial, também contribuíram para esse contexto, visto que a opção pela modernização retirou milhares de postos de trabalho.  

À guisa de conhecimento, somente no setor bancário, o número de postos caiu de 732 mil, em 1990, para 393 mil, em 1999, o que implica redução da ordem de 46,3% e de 25% de queda na área industrial. Em 1991, 42% dos trabalhadores estavam sem carteira de trabalho ou eram autônomos. Além disso, o medo de perder o emprego levou o trabalhador e sua representação política a estabelecerem uma relação de inferioridade diante das propostas feitas pelos empregadores. 

Essa inquietação se reflete também naquelas situações já positivadas pelo poder público e, portanto, protegidas pela Lei. De acordo com o estudo Justiça em números, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, tramitam 99,7 milhões de processos nos 90 Tribunais brasileiros, sendo 70,8 milhões de processos pendentes e 28,9 milhões de novos casos que chegaram às cortes do país no ano de 2014. Desses, 39,4% se referem exclusivamente às causas trabalhistas. Além dessa inquietação pela possibilidade da perda do emprego formal, há, entre a classe trabalhadora brasileira, o temor provocado pela baixa resolutibilidade da Justiça do Trabalho. 

Nessa perspectiva, a nova organização do trabalho, oriunda das reformas estatais que caracterizam os anos 90 (Fordismo, Taylorismo, reforma gerencial, Consenso de Washington), exige mudanças e adaptações do mundo laboral às exegeses do mercado de trabalho, como a precariedade, flexibilização das jornadas, desregulamentação legislativa, adesão aos contratos temporários e informais e, mais recentemente, a transformação dos empregos de carteira assinada em contratos via Pessoas Jurídicas (PJ’s) sob regime de terceirização ou empreendedores sociais. 

Essas posturas nos remetem às lembranças do nosso passado escravista. De acordo com a Free Foundation (2014), há, no Brasil, mais de 155 mil pessoas vivendo sob o regime de escravatura moderna. Portanto, sem a intervenção da justiça trabalhista, seria quase impossível identificar e punir os empregadores que cometem esse tipo de crime, principalmente, porque as ações, realizadas em consonância com protocolos internacionais, têm parcerias com demais entidades da Administração Pública e possibilitaram manter e atualizar a “lista suja” do trabalho escravo. Vale recordar que o Brasil não foi o último país a abolir a escravidão, pois depois dele o fizeram Coréia (1894), Irã (1928), Nepal (1921), Etiópia (1942), Catar (1962), Omã (1970) e Mauritânia, em 1980, porém, informalmente, um outro tipo de escravidão deve voltar a assombrar nosso processo produtivo e nossas relações de produção com a aprovação, pelo Congresso Nacional, da proposta de reforma trabalhista levada a cabo pelo governo de Michel Temer.

Em nossa compreensão, os artigos 611 e 620 da Lei 6.787/2016 (reforma trabalhista) tiram poder de negociação dos sindicatos de categorias e jogam peso nos acordos celebrados em detrimento de diversos estatutos jurídicos já consagrados pelo ordenamento nacional, entre os quais a própria Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943. A proposta ora aprovada, além de enfraquecer a sindicalização dos trabalhadores e trabalhadoras, lesiona os dispositivos da Convenção da OIT nº 87, que ainda não foi ratificada pelo Brasil. Claramente, o peso político de uma organização sindical não pode ser comparado ao de uma comissão de empregados, pois aquela tem uma estrutura e um nível de influência maior que essa comissão proposta pela nova legislação votada no Congresso Nacional. 

Na obra A ideologia alemã, de 1847, Karl Marx e Friedrich Engels falam de uma gigantesca parcela da humanidade que vive como massa totalmente “destituída de propriedade” que se encontra em contradição com um mundo de riquezas e de cultura. É dessa massa desvalida que estamos falando como classe proletária, obrigada a se vender cada vez mais barato, no mundo do trabalho. De acordo com o professor Ricardo Antunes, da Unicamp, “o senhor comprava escravo e agora aluga o trabalhador assalariado”. Essa escravidão moderna guarda laços e modus operandi assemelhados e rejeitados na sociedade, mas que ainda voltam a ser praticados de forma sutil, quase imperceptível nos contratos de trabalho. Essa nova forma de escravidão se caracteriza justamente pelo poder da sutileza em que se dão as relações trabalhistas em nossas terras – relações desreguladas, desregulamentadas, à mercê da pouca possibilidade de êxitos negociais dos trabalhadores e trabalhadoras frente ao domínio dos patrões e das novas modalidades contratuais no mundo do trabalho. E, obviamente, não vai constar na legislação a escravidão ainda existente no Brasil, uma vez que isso iria contra as convenções obreiras internacionais, as quais ratificamos, assim como o próprio artigo 149 do Código Penal brasileiro.

Isso posto, a superação da atual crise do trabalho e sua recente formatação, como escravidão moderna, só se dará a contento com a construção decisiva da emancipação humana, sob os auspícios de uma sociedade que dê fim às contradições inerentes à sociedade capitalista. 

*Estudante de graduação em Ciências do Estado na Faculdade de Direito da UFMG 

Alexandre Francisco Braga*