O futuro em jogo

‘Não há beco para os que estão no poder’

Entrevista com Wanderley Guilherme dos Santos

Wanderley Guilherme dos Santos
Wanderley Guilherme dos Santos Arquivo pessoal

Aos 80 anos, o pesquisador sênior Wanderley Guilherme dos Santos, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, rendeu-se à internet. Uma das principais referências da ciência política brasileira, ele criou há poucos meses o blog Segunda Opinião, no qual escreve regularmente sobre a complexa conjuntura política. “É gostoso, mas também bate certa ansiedade. As coisas vão acontecendo, você escreve um artigo e, no dia seguinte, já acha que está obsoleto”, comenta ele, que fará conferência na UFMG, no início do próximo semestre, sobre a democracia no Brasil contemporâneo.

Um de seus últimos posts serviu de mote para esta entrevista ao BOLETIM, na qual o cientista político fala sobre o “beco” em que teria se metido a política nacional com o afastamento da presidente Dilma Rousseff e a ascensão de um governo provisório. “Essa perspectiva de buscar uma saída é de apenas uma parte da população, do eleitorado e dos políticos brasileiros. Não existe beco para o grupo que está no poder, para a maioria no Congresso, para a maior parte dos órgãos de imprensa e para as associações empresariais. Esses segmentos consideram que o Brasil está instalado em uma normalidade constitucional”, analisa o professor. Confira trechos da entrevista.

A respeito da atual crise político-institucional e dos seus desdobramentos até o momento, o senhor afirma, no texto Saída ou beco constitucional, publicado em seu blog, que está seguro “de que não há solução constitucionalmente imaculada para tamanho desarranjo político” e que a “crise de usurpação só terá fim quando inventarem uma interpretação jeitosa que, embora nua, cubra a ilegalidade do acordo”. Poderia aprofundar essa reflexão?

Quando escrevi esse texto, tinha em mente as propostas surgidas na blogosfera,  como o plebiscito e novas eleições. O problema é que elas não cabem na Constituição. A adoção de qualquer uma exigiria a interpretação elástica de algum parágrafo constitucional. Só há três saídas para o desenlace da atual situação: 1) a renúncia do governo interino antes que o mandato complete dois anos (nesse caso, o Supremo Tribunal Federal convocaria novas eleições); 2) o -governo renunciaria depois de dois anos, e o legislativo indicaria um presidente-tampão para completar o mandato; 3) a situação -caminharia com os conflitos abertos, com maior ou menor intensidade. Iria aos trancos e barrancos até as próximas eleições. 

Qualquer coisa fora disso, tem que se recorrer a alguma forma de “jeitinho”. O que ocorre é que as pessoas, ainda que bem intencionadas e apaixonadas, têm discutido esse tema [a saída da crise político-institucional] como se fosse uma coisa simples. Primeiro, como se fosse competência da presidente afastada convocar novas eleições. E não é. Nem dela nem de ninguém. A não ser nas condições especiais mencionadas. O que ela pode é propor uma emenda. Como apresentar isso a um Congresso que está prestes a impedi-la? 

Em 1962, o senhor escreveu o artigo Quem vai dar o golpe no Brasil, um prenúncio do golpe civil-militar que ocorreria dois anos depois. Que semelhanças o senhor vê entre a conjuntura que culminou no movimento militar e a que vivemos hoje, na qual uma presidente da República eleita pelo voto popular está sendo impedida por um dispositivo constitucional?

Se me permite esclarecer, Quem vai dar o golpe no Brasil não é artigo. Já ouvi essa referência algumas vezes. É um panfleto publicado na coleção Cadernos do povo brasileiro, editada pela Civilização Brasileira. Voltando à sua pergunta, acho que não existe semelhança. O que há são duas dessemelhanças principais. A primeira é que em 1964 os militares estavam profundamente envolvidos na política partidária. Havia clivagens nas forças armadas – em especial no Exército – entre nacionalistas, pessedistas, udenistas e petebistas. Isso viabilizou a intervenção porque representou uma projeção para a política civil – e também como repercussão da própria política civil – de conflitos que estavam se passando nas forças armadas. Felizmente, isso não existe hoje. Não há envolvimento das forças armadas na política partidária. 

"Em 1964, não se via, de fato, uma sociedade mobilizada. Havia um sem-número de siglas que aparentemente correspondiam a grupos sociais organizados. Mas não eram. Eram siglas de fantasia."

E a outra diferença?

Em 1964, não se via, de fato, uma sociedade mobilizada. Havia um sem-número de siglas que aparentemente correspondiam a grupos sociais organizados. Mas não eram. Eram siglas de fantasia. Havia uma movimentação limitada a alguns sindicatos que representavam seus trabalhadores. Hoje é muito diferente. Já há algum tempo que a sociedade brasileira é extremamente mobilizada em associações voluntárias, grupos de interesse, associações desportivas, de pais e mães de estudantes, de pessoas com deficiência, de defesa ambiental, enfim de todo tipo que se possa imaginar.  

Mas diante de certa percepção de que a classe política e as próprias instituições são incapazes de encontrar uma saída para a crise, não haveria o risco de que, em algum momento, os militares sejam instados a entrar no jogo político? 

Eu não sou capaz de antecipar o que poderia acontecer na disposição de uma coletividade. Não há como, neste momento, imaginar as condições que poderiam ser postas para que o Exército, como instituição, interfira no processo civil. 

Recorrendo a uma imagem que o senhor emprega no artigo do blog, há saída nesse beco?

Essa perspectiva de buscar uma saída é de apenas uma parte da população, do eleitorado e dos políticos brasileiros. Não existe beco para o grupo que está no poder, para a maioria no Congresso, para a maior parte dos órgãos de imprensa e para as associações empresariais. Esses segmentos consideram que o Brasil está instalado em uma normalidade constitucional. Para os grupos que discordam desse processo é que se impõe o problema de como superar essa situação em um contexto de legalidade. A saída deve apontar para algo que venha a ser aceito pela maioria dos atores políticos relevantes.

[Versão ampliada da entrevista pode ser lida no Portal UFMG, seção Pesquisa e Inovação]

Flávio de Almeida