Onde a cidade termina

A política na memória

Tese faz ‘leitura arqueológica’ de Memórias do cárcere para mostrar como Graciliano Ramos produz literatura política sem maniqueísmos

Xilogravura de Percy Deane que ilustra edição de 1989 do livro Memórias do cárcere
Xilogravura de Percy Deane que ilustra edição de 1989 do livro Memórias do cárcere Editora Record

“Memórias do cárcere e outros textos de Graciliano Ramos (1892-1953) apresentam uma espécie de grande assembleia virtual ou um ‘jogo de argumentação’ – como Jacques Rancière define a política – que sustenta, exemplar e eficientemente, a ideia de agon, o conflito de vozes contrárias. Em determinada perspectiva contemporânea, é essa a própria definição de democracia”, comenta o pesquisador Willy Carvalho Coelho, ao falar dos resultados de sua pesquisa, que mereceu menção honrosa no Grande Prêmio UFMG de Teses de 2015.

O trabalho, realizado no âmbito do Programa de Estudos Literários, é resultado do que o autor denomina “leitura arqueológica”, que se dispõe a “depreender do texto as várias camadas de sentido que ele veicula: tempos narrativos, vozes diversas, performances narrativas específicas e originais, que determinam a qualidade estética ou axiológica do texto”.

Graciliano consegue produzir literatura altamente reflexiva, sem maniqueísmos

O professor Wander Melo Miranda, que orientou a pesquisa, ressalta que Willy Coelho promove discussão avançada do ponto de vista teórico, articulando o diálogo de Graciliano com filósofos e teóricos como Jacques Rancière, Michel Foucault e Giorgio Agamben. “Ele aborda a liberdade como questão política pelo viés literário, e não de maneira disciplinar, o que confere validade mais ampla e forte a sua análise. Não há compromisso com categorias políticas e sociais”, comenta Miranda. Willy Coelho explica ainda que, em vez de aplicar um conjunto de teorias ao texto, a proposta é alargar o repertório da crítica, extraindo do texto literário todo seu potencial de reflexão sobre a experiência.

De acordo com o pesquisador, o que define uma literatura como política é a forma da obra. Graciliano consegue produzir literatura altamente reflexiva, sem maniqueísmos, “inventando, diante de nossos olhos, a tal ‘assembleia virtual’ – em vez de falar pelos oprimidos, ele dá, literalmente, voz a todos”. Coelho explica que, em Memórias do cárcere, o general, o intelectual e o carregador de sacos são construídos “com a mesma disposição performativa”, têm a mesma chance de falar. “Isso acontece também com a própria personagem Graciliano, o que constitui estratégia narrativa ímpar e libertadora para explorar das memórias todo seu potencial de reflexão.”

Noção de poder

Willy Coelho conta que, ao iniciar o doutorado, tinha a hipótese, relativamente sustentável, de que a narrativa de Graciliano promove uma reflexão a respeito da noção de poder. Depois de analisar o romance Angústia, no mestrado, e de tomar contato com toda a obra do escritor alagoano – incluindo análises importantes –, ele partiu para a escolha das “alianças teóricas”, definidas de maneira a um tempo racional e afetiva.

“As principais influências verdadeiramente pragmáticas foram Jacques Rancière e Michel Foucault”, diz Coelho. “O primeiro, filósofo ainda vivo que se dedica à investigação do texto literário, me propiciou aprendizagem indireta e absolutamente preciosa a respeito do tema da política, sobretudo do conceito de democracia. Foucault, por sua vez, é uma espécie de maestro quando se trata de lidar honestamente com o tema do poder na contemporaneidade.”

A filosofia com a qual Coelho empreende diálogo propõe que a ideia de democracia se sustenta em desentendimento ou dissenso. Isso possibilita, segundo ele, “entender a tese de que a literatura reflete sobre o tema da política por meio de suas imagens ou cenas literárias”.

Ainda de acordo com o pesquisador, a investigação se apoiou também na -noção de “subjetivação”, que ganha em seu trabalho o aspecto de racionalidade. “Em termos simples, é um modo de refletir sobre como se organiza a natureza própria do pensamento, nas suas formas individual e coletiva”, diz -Coelho, cuja tese segue a cronologia dos eventos das Memórias, interrompida apenas para se discutir a -repercussão da noção de poder na também memorialística Infância (1945).

Tese: Incomensurável comum: políticas da escrita em Graciliano Ramos
Autor: Willy Carvalho Coelho
Orientador: Wander Melo Miranda
Programa de Pós-graduação em Estudos Literários

Itamar Rigueira Jr