Rumo ao terceiro milhar

20 de novembro para quê, para quem?

A data de 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, representa um marco nacional do reconhecimento da luta e da resistência da população negra contra um sistema de opressão, que está nas estruturas de construção do Brasil, de onde ainda ressoa a noção de inferioridade racial. Essa noção de inferioridade foi criada com o apoio do Estado, da Igreja e da Ciência. Portanto, essa data não é, necessariamente, um momento para comemorações ou celebrações festivas. O 20 de novembro pode ser também um momento para o país refletir sobre suas origens, raízes e tradições. 

Qualquer nação com um histórico de colonização e, por isso, marcada pela instauração de opressões baseadas em raça, gênero e classe deve olhar para seu passado a fim de instaurar outras dinâmicas para descolonizar corpos e mentes, ainda prisioneiros das relações coloniais baseadas na  diferença que se sustenta na criação de uma norma social, segundo a qual o outro é o diferente inferiorizado na relação. 

 O 20 de novembro é uma data propícia para pensarmos em que bases têm-se dado as relações entre as três raças, propaladas como fundadoras da nossa brasilidade. A fusão de índios, brancos e negros, pela miscigenação, produziu o brasileiro mestiço ou criou um tipo ideal e universal de ser humano?  A verdade é que o mestiço corresponderia justamente a esse tipo idealizado, alguém desracializado, homogeneizado pela mistura racial e pela cultura. No entanto, quando deparamos com as estatísticas de homicídios de jovens negros ou com as estatísticas de participação da população negra na universidade, seja na graduação, seja  na pós-graduação, ou ainda, quando  observamos a  tonalidade da pele das pessoas que estão em postos de trabalho considerados subalternos na sociedade, constatamos a seguinte realidade: o ideal de mestiço brasileiro é branco. Aquele que não corresponde a essa característica do ideal universalizado é excluído das oportunidades e espaços sociais que conduzem ao sucesso acadêmico ou aos postos prestigiados no mercado de trabalho, ou mesmo tem seu status de humano questionado por policiais nas vielas das periferias da cidade.

O valor dado à vida ainda tem relação com um imaginário sobre uma escala racial em que as raças são hierarquizadas e segundo a qual uns valem mais e outros menos. Os movimentos sociais negros vêm denunciando essa estrutura social racialmente cindida desde o pós-abolição da escravatura, por meio de movimentos sociais como a  Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental dos Negros. 

O Estado brasileiro se reconheceu racista ao ser signatário das ações de combate ao racismo na Conferência de Durban, realizada em 2001. Esse reconhecimento é responsável por uma série de efeitos desestabilizadores das práticas racistas da nossa sociedade. São os casos da instituição de leis como a 10.639/03 (que estabeleceu o ensino da história da África e das culturas afro-brasileiras nos currículos escolares brasileiros), da promulgação das cotas nas universidades públicas, no serviço público federal e na pós-graduação (estas últimas aprovadas na UFMG neste ano) e da demarcação de terras quilombolas. Esses avanços precisam ser reconhecidos, não obstante ainda haja razões para que o 20 de novembro seja uma data oportuna para pensarmos que isso  é pouco e que essas conquistas podem estar em risco diante da conjuntura política atual.

Existe ainda no Brasil um racismo que insidiosamente demarca a estrutura das instituições. E não é uma questão de relações entre indivíduos. O racismo institucional atua na manutenção das desigualdades, quando, por exemplo, há uma redução nas verbas destinadas a promover a permanência do estudante que ingressou na universidade via ação afirmativa. Para Jurema Werneck, o racismo institucional ou sistêmico opera de forma a induzir, manter e condicionar a organização e a ação do Estado, suas instituições e políticas públicas – atuando também nas instituições privadas, produzindo e reproduzindo a hierarquia racial. O reconhecimento das diferenças étnico-raciais na elaboração de políticas públicas afirmativas é uma forma de desconstruir o ideal universalista dessas políticas, e, assim, combater o racismo que impregna as instituições brasileiras e mantém lugares sociais de privilégios e de subalternidades, demarcados pela cor da pele. 

O dia 20 de novembro é propício também para a população branca iniciar um movimento de se pensar racialmente, de pensar o seu lugar no mundo racializado e começar a refletir sobre os direitos e os privilégios que historicamente vem acumulando. Assim, a luta antirracista ganhará status de problema nacional, e a reflexão sobre a quem pertence a sociedade, como estão distribuídos os direitos sociais, os recursos, os bens e os serviços produzidos ganhará densidade.

Já é tempo de  circular pela sociedade e ver pessoas negras ocupando espaços de poder, a começar pelos  colegiados das universidades.

Kelly Cristina Cândida de Souza, mestranda em Educação da Faculdade de Educação da UFMG e pesquisadora do Programa Ações Afirmativas