Nº 1521 - Ano 32 09.03.2006

ENTREVISTA - Ana Lúcia Gazzola e Marcos Borato

“A Universidade é instrumento de construção da cidadania plena”

 

A poucos dias do fim de seus mandatos como reitora e vice-reitor da UFMG, Ana Lúcia Gazzola e Marcos Borato receberam a reportagem do BOLETIM para uma entrevista em que fizeram um detalhado raio-x de sua gestão. Eles destacaram os avanços – como os esforços de ampliação do acesso ao ensino superior – os momentos tristes (o acidente no Peru) e difíceis (como a crise financeira de 2004).

Mas tanto as conquistas quanto a superação de crises foram possíveis, na opinião dos dois dirigentes, graças a um traço da cultura institucional que sempre marcou a Universidade e que foi fortalecido nos últimos quatro anos: a coesão interna.

Que herança esta gestão deixa para a Universidade?

Ana Lúcia – Eu acredito que a UFMG alcançou uma visibilidade muito maior, tanto no cenário nacional quanto no internacional. A Instituição está posta no mapa. A projeção que ela adquiriu tem hoje a mesma dimensão da sua produção acadêmica. Essa etapa foi vencida pelos novos instrumentos de comunicação – TV UFMG, Rádio UFMG Educativa, Revista Diversa – e pela própria cultura de prestar contas por intermédio dos veículos de comunicação. A análise de clipping mostra que a presença da UFMG na mídia é muito maior e isso acontece por conta de nossas qualidades e realizações e não mais apenas nos momentos de crise, como tantas vezes aconteceu.

E a democratização do acesso?

Ana Lúcia - Foi uma marca importante. A Universidade assumiu a democratização do acesso em sua agenda. Houve uma herança positiva em alguns aspectos: o aumento de 31% de vagas noturnas; a criação de cursos de alto impacto e demanda no período noturno, como Direito e Sistemas de Informação; a expansão em Montes Claros; o trabalho com os pólos de educação a distância, em fase de implantação em cinco cidades estratégicas em Minas Gerais; os cursos de pedagogia da Terra e a licenciatura para professores indígenas. Isso tudo somado a uma política cada vez mais forte de assistência ao estudante, de equalização de oportunidades acadêmicas e de permanência na Universidade. Destacaria, ainda, a internacionalização da UFMG – hoje temos um número de convênios e alunos estrangeiros maior do que a soma da nossa história e um número muito grande de alunos de graduação no exterior – e o Parque Tecnológico, cujo projeto avançou muito nos últimos quatro anos.

Que projeto os senhores elegeriam como a marca dessa gestão?

Ana Lúcia - O que chama mais atenção são as obras; dos sete prédios do Campus 2000, concluímos cinco conjuntos. E deixamos em fase avançada os complexos da Escola de Engenharia e da Faculdade Ciências Econômicas. Mas nossos indicadores acadêmicos cresceram muito; a UFMG é a universidade brasileira com a melhor gestão de pós-graduação. No Enade e no Provão, estamos no topo do ranking nacional e somos a segunda universidade brasileira – a primeira entre as federais – com o maior número de patentes.

Borato - Acho que a principal característica da UFMG é a sua capacidade de coesão interna, marca que se consolidou fortemente.

Em que situações essa coesão foi mais evidente?

Ana Lúcia - Houve, por exemplo, o pacto dos prédios. Construímos sete prédios ao mesmo tempo, de forma que o dinheiro fosse suficiente para viabilizar todas eles. 

Borato - Outro exemplo espetacular é o Centro de Microscopia Eletrônica. Conseguimos que nove unidades se juntassem em torno de um projeto único, para construir e equipar esse centro. Esse espírito de coesão interna é observado pelos parlamentares e por todas as instâncias governamentais. Eles percebem que aqui as coisas não são presididas por objetivos particulares.

Houve um momento mais difícil no mandato?

Ana Lúcia - O mais triste foi o acidente com os nossos alunos no Peru. Outro foi quando se confirmou a morte da Beth Pinheiro (a funcionária Elizabeth Pinheiro, do ICEx). Também tivemos momentos muito duros com as greves que atingiram o Hospital das Clínicas (HC). Se, por um lado, reconheço a legitimidade das lutas dos trabalhadores, por outro um único paciente que deixa de ser atendido representa um alto preço a se pagar.

Borato - Na minha opinião, o problema político mais difícil foi a crise orçamentária. Ela afetou a todos e só poderia ser superada a partir de um movimento conjunto, de colaboração coletiva. Não foi fácil, porque houve interesses contrariados, mas, de novo, foi por causa dessa coesão interna que conseguimos superar aquele momento.

Ana Lúcia -  Essa e outras crises foram também momentos de grande aprendizado. A crise orçamentária não foi exclusiva da UFMG, mas outras universidades continuam com dívidas e a nossa, não. Lutamos e conseguimos recursos extra-orçamentários e ainda devolvemos a taxa de emergência (determinada pelo acréscimo de 2% sobre a alíquota cobrada dos projetos de prestação de serviços). Ao final, mantivemos os investimentos de 2004 e aumentamos extraordinariamente aqueles realizados em 2005. Ao todo, conseguimos captar, em quatro anos, um montante de R$ 216 milhões em várias frentes de financiamento. 

Que projetos não evoluíram na velocidade desejada?

Borato - Era nosso desejo avançar em algumas questões, como a das cotas. O governo poderia ter feito mais, deixando que as universidadas fizessem o seu planejamento e induzindo o processo com a contratação de professores e alocação de recursos. Mas também tivemos problemas internos, até porque é esse processo não depende apenas da vontade da Reitoria. Nossa posição pessoal era de que deveríamos ter lançado as cotas – para alunos de escolas públicas, negros e pessoas com necessidades especiais. Isso, porém, não é consenso na Universidade.

Como os senhores avaliam a questão da gestão de pessoal?

Ana Lúcia - O passivo de pessoal, particularmente dos servidores técnicos e administrativos, vai ficar para o futuro. E mesmo com os avanços representados pelas novas carreiras, planos de cargos e salários, faltou também implementar o plano de saúde. Fizemos um esforço grande aqui na UFMG, inclusive durante minha gestão na Andifes. Esse pleito foi levado ao MEC, que assumiu a proposta de criar o seguro-saúde, principalmente para trabalhadores de baixa renda. Mas essa discussão ainda está caminhando, tanto que no dia 9 de março haverá uma reunião para tratar do assunto. Por outro lado, nós conseguimos avançar na questão da moradia, ao assinarmos com a Prefeitura de Belo Horizonte o convênio do Plano de Arrendamento Residencial (PAR).

Nesse contexto de realizações e não-realizações, houve frustrações?

Ana Lúcia - Poderíamos ter avançado mais nos cursos noturnos. Tínhamos 16% de vagas nos cursos noturnos, em 2002, e hoje contamos com 21%, mas a LDB determina que 30% das vagas nas instituições de ensino superior sejam oferecidas à noite. É lamentável que uma universidade com a qualidade da nossa não tenha mais cursos noturnos.

Mas existem condições para concretizar essa ampliação?

Ana Lúcia - As pessoas alegam dificuldades, mas condições existem. Por que os cursos de especialização podem funcionar à noite, e os de graduação não? As dificuldades são as mesmas.

Melhorou o relacionamento das universidades federais com o governo federal a partir da chegada de Lula ao poder?

Ana Lúcia - Não há nem como comparar, apesar de que houve outro momento muito bom, o período em que o professor Murílio Hingel foi ministro da Educação, no governo Itamar Franco. Agora mantemos ótimo relacionamento com o governo federal. O fundamental para essa mudança foi que o Ministério da Educação passou a ser ocupado por pessoas que gostam das universidades federais. Isso não ocorria no início do governo Lula nem nos governos anteriores, quando os ministros da Educação falavam mal das Ifes e permitiam que circulassem discursos negativos sobre elas. A partir de 2004, os dirigentes do MEC – os ministros Tarso Genro e Fernando Hadadd e o secretário Nelson Maculan – começaram a perceber que as universidades federais poderiam ser um instrumento estratégico de enorme valor. Aí começou-se a falar de expansão, recuperação de infra-estrutura, programas especiais, aumento do custeio. A própria visita do presidente Lula simbolizou esse respeito e a compreensão do papel estratégico das universidades federais.

Que mensagem os senhores deixariam para a comunidade da UFMG?

Ana Lúcia - Certa vez perguntaram a Villa-Lobos qual a compreensão que ele tinha de suas obras e de seu significado e ele respondeu que suas composições eram correspondências enviadas ao futuro sem esperar resposta. Já eu penso que sem correspondência enviada ao futuro não haverá qualquer resposta. Acredito muito no papel da universidade como instrumento estratégico para construção de cidadania plena, de soberania nacional e de uma sociedade inclusiva. E a nossa Universidade se encaixa nesse perfil. Ela tem uma belíssima história, e cada um de nós é apenas um pedaço de uma trajetória extraordinariamente construída por várias gerações.

Borato - A UFMG, desde os seus primórdios, se firmou pela qualidade. Mas acho que, nos últimos quatro anos, houve um impulso fundamental e isso precisa ter continuidade. Também precisamos manter esse espírito que conjuga a relevância social com a excelência, pois só assim a Universidade será considerada uma instituição imprescindível pela sociedade. 

Que planos os senhores têm para depois de 21 de março? (data de transmissão de cargo para os novos reitor e vice)

Ana Lúcia - Há algumas possibilidades. Mas onde estiver, vamos trabalhar pela educação pública, pela equalização de oportunidades, pela democratização do acesso aos bens de conhecimento, pelas questões da ciência, tecnologia e cultura num sentido amplo.

Borato -  Depois de oito anos de administração – fui diretor da Faculdade de Medicina durante quatro anos e agora vice-reitor – quero voltar para a Medicina, já que nesse período não dei aulas na graduação. Renovei minha bolsa no CNPq como pesquisador e, claro, depois dessa experiência toda, não tem como deixar de dar uns “pitacos” na parte administrativa. Também vou reassumir a função de coordenador do Serviço de Hematologia do Hospital das Clínicas.