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Nº 18 - Ano 9 - 05.08.2010

Web e redes sociais

O criador e a criatura

Entrevista: Vint Cerf

Talvez você passe várias horas do seu dia com a filha deste homem e nem saiba disso. O cientista norte-americano Vinton Gray Cerf, ou simplesmente Vint, é considerado um dos pais da internet devido às suas contribuições no desenvolvimento da arquitetura básica da web. Além disso, em parceria com o engenheiro Robert Kahn, Vint ajudou a criar os sistemas de protocolos TCP e IP, responsáveis pela transmissão de dados na rede. Participou ainda do desenvolvimento do primeiro sistema de e-mails ligado à internet, o MCI Mail, lançado em 1983 pela MCI Communications, empresa da qual foi vice-presidente sênior entre 1994 e 2005.

Doutor em Ciência da Computação pela Universidade da Califórnia (Ucla), Vint é respeitado pela sua capacidade de prever como a internet e outras tecnologias serão utilizadas pelas pessoas em um futuro próximo. A precisão de suas análises rendeu-lhe os cargos de vice-presidente e evangelista-chefe de internet da Google, onde é responsável pela identificação de novas tecnologias, aplicativos e tendências. O passado, o presente e o futuro de sua “filha” são abordados nesta entrevista que Vint Cerf concedeu à DIVERSA.

Como e quando surgiu a possibilidade de explorar a internet comercialmente? 

O projeto internet começou como um programa de pesquisa desenvolvido por Robert Kahn na então Agência de Pesquisas em Projetos Avançados (Arpa). Ainda estava na universidade, e ele me convidou para participar dessa empreitada. Trabalhamos juntos até 1973, quando iniciamos a elaboração do nosso design de internet. Em 1988, uma exposição chamada Interop (de interoperabilidade), criada por Daniel Lynch, se fixou em Santa Clara, Califórnia. Lembro-me de entrar no salão principal da Interop com Eric Benhamou (então chefe de engenharia da fabricante 3Com) e me espantar com o estande gigantesco da Cisco. Perguntei ao Eric quanto custava um estande daqueles e ele me disse que era algo na faixa de 250 mil dólares. Fiquei paralisado: “Uau, esses caras da Cisco devem ter percebido que vender roteadores é um ótimo negócio”. Naquele momento, senti a necessidade de encontrar uma maneira de transformar a internet em um negócio autossustentável, que não funcionasse apenas nas agências de pesquisa. 

Foi aí que surgiu o MCI Mail?

Fui ao Conselho Federal de Redes pedir permissão para conectar à internet o MCI Mail,  serviço de e-mails comercial que projetei em 1983. Eu esperava que a autorização para interligá-lo ao backbone (esquema de ligações centrais de um sistema de alto desempenho) de uma das principais redes da época, a NSFNet, romperia com a lei que proibia a transferência comercial de dados em backbones bancados pelo governo. Eles me deram a permissão de um ano e, em 1989, um dos engenheiros da CNRI (empresa de Robert Kahn da qual eu era vice-presidente), David Ely, havia construído o gateway (porta de ligação) para conectar o MCI Mail ao sistema de e-mails da internet. Naquele mesmo ano, foram criados mais três serviços comerciais de internet: UUNet, PSINet e CerfNet. Na época, não havia como ter certeza de que daria certo, mas eu acreditava que esse serviço só seria disponibilizado para o comércio e para o público em geral se fosse utilizada uma base econômica forte para sustentar a expansão e operação da internet em termos comerciais.

Mais tarde, em 1992, foi aprovada no Congresso americano a legislação que permitia que a transmissão comercial de dados fosse mesclada à transmissão de dados pelos backbones utilizados para pesquisas (NSFNet, Internet Científica da Nasa, e ESNet, do Departamento de Energia do país). Esse projeto de lei, apoiado pelo então vice-presidente Al Gore, foi aprovado e estabeleceu base legal para a transmissão de dados comercial e acadêmica nas redes de internet dos Estados Unidos.

 Como eu tenho problemas auditivos, me interessei imediatamente pelos e-mails como  alternativa às conferências por telefone.

Como o senhor previu o potencial do MCI Mail como ferramenta de comunicação entre o público em geral e não só entre os pesquisadores?

O e-mail ligado em rede foi inventado em 1971 por Ray Tomlinson na Bolt, Baranek and Newman (BBN), empresa responsável pela construção da ArpaNet, espécie de precursora da internet. Foi sucesso instantâneo: toda a comunidade de pesquisadores reconheceu seu potencial imediatamente. O mesmo pode ser dito sobre os e-mails comerciais depois que se estabeleceu a infraestrutura para eles. Como eu tenho problemas auditivos, me interessei imediatamente pelos e-mails como  alternativa às conferências por telefone. Eles não são afetados pelo fuso horário e tendem a ser mais precisos. Infelizmente, depois surgiram os flamings e os spams...

E quanto às redes sociais? Era possível imaginar, nas décadas de 70 e 80, que a internet poderia ser utilizada com essa finalidade?  

A ideia de bate-papo já existia no começo dos anos 70 (e, possivelmente, antes disso, em sistemas de tempo compartilhado). Games já eram bastante populares nos primeiros anos da Arpanet e na Usenet, espécie de precursora dos fóruns que temos hoje. Listas de distribuição também eram muito comuns. Todas essas ideias foram transferidas para a internet. Hoje em dia, Linkedin, Facebook e Orkut criaram grupos de discussão mais sólidos e outros sistemas de sociabilidade. 

Hoje em dia, é possível acessar a internet de qualquer lugar usando celulares e outros aparelhos eletrônicos. Como o senhor vê essa presença constante da web na vida das pessoas?

A internet nos oferece acesso instantâneo à informação a qualquer hora que precisarmos. Ela se tornou uma ferramenta para interação social. Você pode utilizá-la para saber as últimas novidades por meio do Twitter ou, em situações de emergência, para acionar o Google Maps e o Google Earth e saber onde você está em tempo real. Ela também permite a captura e o relato dos eventos no exato momento em que eles estão acontecendo. Quem tem um celular tem também uma câmera fotográfica, uma câmera de vídeo e um gravador de áudio. O YouTube permite que postemos essas informações quase imediatamente, assim como Flickr, Facebook e outros. Podemos controlar tanto nossas finanças quanto o ar-condicionado sem sair do lugar. Podemos instalar webcams nas nossas casas para aumentar a segurança. A informação está fluindo em todos os espaços.

Bob Wollheim, um dos pioneiros da internet no Brasil, afirmou em 1996 que a internet não é uma rede de computadores, mas sim uma rede mundial de pessoas. O senhor concorda com essa afirmação? 

Bom, eu não concordo com isso. A rede de pessoas não funcionaria sem uma rede de computadores. Mas eu concordo que muitos dos melhores aplicativos que temos hoje foram pensados com base nas interações entre grupos de pessoas com interesses em comum.

Qual é o principal desafio dos atuais pesquisadores da internet?

São muitos: lidar com as mídias, com as várias línguas, tradução, realidade virtual, evolução do HTML para o HTML5. Vírus, worms, cavalos de troia, ataques de negação de serviço, spam, bullying e abusos de propriedade intelectual. Ainda há muito trabalho a ser feito para garantir que as ferramentas da web sejam mais seguras no futuro. Precisamos de mecanismos mais poderosos de autenticação e garantia de integridade. Veja a questão da propriedade intelectual: por muitos anos, a noção de direitos autorais esteve fortemente ligada à publicação e distribuição dos trabalhos em formatos materiais. A internet põe muitos desses conceitos em xeque, pois entende a duplicação e distribuição de conteúdos digitais como processos triviais. Pense no funcionamento de um navegador: ele copia um arquivo de um computador na internet e então interpreta seu

conteúdo para um usuário. É uma gigantesca máquina copiadora. Eu espero que novas ideias surjam para possibilitar que os criadores de trabalhos digitais possam se beneficiar de seus esforços sem necessariamente serem obrigados a recorrer ao copyright como único meio de remuneração. As autoridades legais e os pesquisadores terão que ser bastante criativos para inventar novas alternativas.

Boa parte dos registros do mundo moderno pode ser acessada apenas em formato digital. O senhor teme que, algum dia, esses registros possam desaparecer completamente por não terem uma versão física?

Sim. Estou preocupado com o problema do “bit rot” (apodrecimento de dados). Se não conseguirmos manter o acesso aos suportes que sabem ler objetos digitais complexos, estes podem ficar inacessíveis. Mesmo que possamos preservar os bits de informação por centenas de anos, se não possuirmos o software necessário para interpretar e renderizar esses bits, eles ficarão inacessíveis. Talvez seja necessário preservar não só o software, mas todo o sistema operacional e até as máquinas (ou réplicas virtuais delas) para permitir que tenhamos acesso contínuo aos dados. Boa parte dos metadados desses objetos nos diz como formatar ou como ler seu conteúdo. Por exemplo, se não tivermos mais um sistema de nomes de domínios, o que vamos fazer com os URIs e URLs mencionados nos objetos? E quanto ao aplicativo do Google Earth que sabe ler arquivos KML? Você pode inventar mil situações aqui. As proteções de propriedade intelectual para aplicativos poderiam, em longo prazo, nos prevenir de restituir esses arquivos incorretamente.

Eu tenho interesse nessa questão da comunicação interestelar, mas antes nós temos que resolver o problema de instalar equipamentos em estrelas próximas em um tempo aceitável.

Um dos projetos nos quais o senhor está envolvido é a Internet Interplanetária. Como essa iniciativa pretende conectar pessoas e/ou máquinas a anos-luz de distância?

Ainda não chegamos ao ponto de pensarmos em uma comunicação interestelar, ou seja, a muitos anos-luz de distância. Os protocolos da rede tolerante a atrasos (DTN) instalados e testados são para comunicação interplanetária, em que as viagens de ida e volta devem ser medidas em horas, dias ou, talvez, semanas. Também temos interesse em usar esse protocolo para criar constelações em rede que utilizem dispositivos fixos, móveis ou em órbita, para conectarem-se umas às outras e a missões com humanos. Há um número de missões planejadas que precisarão desse tipo complexo de rede no lugar das ligações de rádios ponto a ponto que são usadas na maioria das atuais missões. Eu tenho interesse nessa questão da comunicação interestelar, mas antes nós temos que resolver o problema de instalar equipamentos em estrelas próximas em um tempo aceitável. Na situação atual, nossos sistemas de propulsão levariam 50 mil anos para alcançar a Alpha Centauri [a estrela mais próxima do Sol].

Como o senhor acha que a web será utilizada daqui a 20 anos? 

Entramos em um novo período de evolução da internet, no qual podemos começar a pensar em uma internet das “coisas”. Nossos aparelhos celulares “inteligentes” (nem faz mais muito sentido chamá-los de “telefones”) podem ver, ouvir, sentir e falar. Eles podem participar do mundo real quase da mesma maneira que nós. Na verdade, eles podem até mesmo fazer coisas que nós não podemos. A fusão dos espaços de informação reais e virtuais utilizando equipamentos portáteis e o encaixe da computação e da comunicação em praticamente tudo estão criando um ambiente informativo inédito na História. A natureza interativa desse ambiente e a capacidade de pesquisar, correlacionar, associar e misturar informações de diversas fontes criam essa base orgânica na qual é praticamente impossível escapar das inovações. Nossos aparelhos portáteis podem saber onde estão usando o Sistema de Posicionamento Global (GPS) ou estimativas obtidas através de emissões de rádio da rede sem fio de telefones. Essa informação pode ser usada para oferecer acesso às informações que são importantes para a localização. De fato, o valor da informação geograficamente indexada é maior quando ela se torna útil. Estamos carregando nossas “janelas de informação” em nossos bolsos. Aparelhos fixos de sensoriamento também estão criando novos espaços de informação. Uma iniciativa chamada Smart Grid nos Estados Unidos pretende oferecer aos consumidores informações mais detalhadas sobre seu uso de energia e como utilizar melhores ferramentas para reduzir o consumo. Pela primeira vez na História, a geração de energia elétrica pode ser utilizada de maneira inteligente, criando, por exemplo, um regime para os consumidores diminuírem a demanda em tempos de sobrecarga em troca de descontos no pagamento.

Mas essa evolução também traz os seus riscos...

Obviamente, essas possibilidades implicam consequências negativas que devem ser analisadas. A privacidade pode ser abalada graças à quantidade de dados acumulada nessas ferramentas. A segurança tende a ser um problema. Por exemplo, se essa informação detalhada sobre o uso de energia elétrica cair em mãos erradas, é possível saber se uma casa está vazia ou não. Podemos imaginar várias outras situações em que a informação pode ser utilizada para incomodar ou, no pior dos casos, agredir indivíduos, famílias e empresas. Por isso, fica cada vez mais claro que as leis nacionais não são suficientes ou mesmo compatíveis com os limites territoriais. Para imprimir assinaturas digitais que tenham peso legal equivalente em todo o mundo, é necessário estabelecer diretrizes para publicação de certificados e para fortalecer a criptografia associada. A internet atua em escopo global e podem acontecer casos de abuso em que o criminoso está em um país e a vítima em outro, por isso é preciso prestar atenção às questões de jurisdição, acordos multilaterais, coerção internacional de contratos e uma miríade de outros assuntos diplomáticos complexos. 

Igor Lage