Uma cadeia para a inovação
‘Incumbida e ocupada’. Sempre
Perfil Magda Becker Soares
Ela chegou aos 80 anos, e está aposentada há 13, mas se engana quem acha que é fácil agendar um encontro com a professora emérita Magda Becker Soares, uma das criadoras da Faculdade de Educação da UFMG, a FaE. Ela passa o início da semana em Lagoa Santa, a 35 quilômetros de Belo Horizonte. Tem casa na cidade, que frequenta desde que nasceu, mas não vai para descansar. Atua como consultora da rede municipal de educação. Tampouco para a família é tão simples encontrar Magda, já que não são raros os fins de semana em que ela viaja para fazer palestras e receber homenagens.
A entrevista para este perfil se encaixou entre duas viagens. Numa delas, Magda Soares recebeu uma estatueta do ídolo Paulo Freire, já devidamente instalada numa das prateleiras que, espalhadas por diversos cômodos e corredores da ampla casa em Belo Horizonte, abrigam cerca de oito mil livros. Ela diz que não consegue se desfazer desses objetos, pelos quais tem adoração. “Sou assim desde pequena, gosto de pegar, cheirar os livros”, se derrete. E não há perspectiva de que a biblioteca vá parar de crescer, mesmo porque Magda promete contribuir pessoalmente: está escrevendo mais um livro de sua extensa bibliografia, sobre a questão das metodologias de alfabetização, e tem outros dois volumes em mente.
Isso sem falar na obra em que pretende descrever um dia a experiência em Lagoa Santa, iniciada há sete anos. “Ainda não estou madura para escrever sobre isso”, ela explica. O entusiasmo com o Núcleo de Alfabetização e Letramento que criou naquela cidade é escancarado. Ela cuida da educação infantil e das séries iniciais do ensino fundamental. Convicta de que é restrito o impacto de cursos de atualização para poucas dezenas de professores a cada vez, Magda Soares agarrou a oportunidade de atuar numa rede inteira. E os resultados são palpáveis, incluindo aumento significativo do desempenho no município no Ideb.
“Funciona porque estou lá, mais que para ensinar, para interagir com os professores, que têm o conhecimento intuitivo, sabem como as coisas ocorrem no cotidiano e questionam minhas certezas”, comenta a pesquisadora. Era isso o que ela queria: confrontar as teorias e a prática, as utopias e a realidade. Estabeleceu metas e continuidade. E criou bibliotecas, uma em cada escola. “Diziam que não tinha espaço, eu sugeria trocar a função de uma sala, fazer um puxadinho”, ela conta.
A história de Magda Soares em Lagoa Santa combina com uma carreira regida, entre outros ideais, pelo de socializar o conhecimento. O Centro de Estudos sobre Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), criado por ela em 1990, é movido pela exigência de que os resultados das pesquisas sejam transformados em ação. Mas ela admite que não é fácil compatibilizar produção e socialização, também porque as demandas são sempre para ontem, o que não combina com o ritmo da universidade, o da pesquisa, “que precisa iluminar a questão antes que se tente resolvê-la”.
Primeiras séries
A nova atividade como consultora é uma novidade que nem chega a representar a maior guinada na vida de Magda Soares. Na época do vestibular, estava decidida a seguir as ciências exatas, por influência do pai, que foi professor de física da UFMG – um filho e um neto retomariam mais tarde o caminho de Caio Líbano Soares –, mas as aulas de português da professora Angela Leão, no Instituto Izabela Hendrix, onde Magda fez todo o percurso básico de ensino, a levariam para a área de línguas e literatura.
Não pretendia ser professora, mas acabou fazendo a pós-graduação em educação, e encontrou na pedagogia a ponte necessária entre o estudo da língua e a formação do professor de língua. Outra correção de rota: contrariando a licenciatura dirigida ao segundo segmento do ensino fundamental, ela optou por estudar a aprendizagem da língua escrita nas primeiras séries. “Percebi que essa aprendizagem começa antes e que precisava me dedicar a essa etapa”, recorda a professora.
“Ali começamos a pesquisar com base na convicção de que a escola reproduz a discriminação social, e é assim até hoje.”
E ela continuaria redefinindo rumos, sempre que necessário. Nos anos 1970, convenceu-se de que a escola não tratava a todos de maneira igual. “Ali começamos a pesquisar com base na convicção de que a escola reproduz a discriminação social, e é assim até hoje.” Não por acaso, um livro que ela escreveu na década de 1980 – Linguagem e escola: uma perspectiva social – é usado até hoje e chegou à 17ª edição. “Acredito ainda na possibilidade de a escola lutar contra a desigualdade”, sentencia a mestra.
A coragem de assumir posições de vanguarda marca a trajetória de Magda Soares em outros momentos e aspectos. “Traduziu ela mesma autores ingleses e franceses que considerava essenciais, acolheu mulheres grávidas ou em dificuldades durante a ditadura, foi feminista e aderiu ao PT na primeira hora”, enumera Eliane Marta Teixeira Lopes, ex-aluna, ex-colega na FaE e amiga de longa data. Como professora e pesquisadora, Magda sempre encantou Eliane pela maneira aberta de encarar o conhecimento e pela facilidade de identificar relações onde aparentemente não existem. “Ela é sempre inovadora e relevante, por isso é chamada até hoje para colaborar com organismos como a Unesco”, diz Eliane. No convívio pessoal, ela define a amiga com três adjetivos: afetiva, respeitosa e alegre. “Trocamos livros e discos, essa é uma das formas de realizar nosso afeto”, revela Eliane.
Embora não tão farta quanto a de livros, a coleção de concertos e filmes em CDs e DVDs é respeitável e garante grande parte da diversão de Magda Soares, que não dispensa também uma dose de uísque em seus momentos na sala de som e vídeo. Em casa ela divide o tempo entre o trabalho, os filmes, os cinco filhos e quatro netos. O dono de seu coração há cerca de 30 anos – ela separou-se do marido com pouco mais de uma década de casada – é o ex-reitor da UFMG Eduardo Cisalpino, com quem vive um relacionamento que ainda hoje pode ser considerado moderno – e quem se surpreende? –, daqueles de casas separadas.
Perfeccionismo
A forma como Magda trata suas missões foi o que sempre impressionou Paulo Sergio Soares Guimarães, professor do Instituto de Ciências Exatas da UFMG. “Herdei dela a obsessão por não procrastinar os compromissos. Sempre trabalhou nos finais de semana, e era muito comum encontrá-la no escritório já às 4 da madrugada. Preferia a paz desse horário”, rememora Paulo Sérgio, que mesmo conhecendo a determinação da mãe, confessa que se surpreendeu com a fluência de sua adaptação ao ambiente digital. A presença de computadores e outros equipamentos em meio a tantos livros e papéis reforça o depoimento.
“Herdei dela a obsessão por não procrastinar os compromissos. Sempre trabalhou nos finais de semana, e era muito comum encontrá-la no escritório já às 4 da madrugada. Preferia a paz desse horário”
A adoção sem sustos das formas novas de escrever e se comunicar tem a ver talvez com uma característica que a incomoda. “Sou exageradamente perfeccionista, talvez porque seja virginiana, ou porque fui educada na religião protestante metodista, de meus ascendentes alemães (os bisavós maternos imigraram para construir a Estrada União Indústria, no Rio de Janeiro). O lema repetido diariamente na escola era ‘Conhece o dever e cumpre-o’. Digo que sou permanentemente ‘ocupada e incumbida’, e isso pesa, porque nunca estou plenamente satisfeita. Mais ainda: estou sempre atenta para o que pode ser meu dever, o que significa que vejo deveres onde não seria necessário.”
O desabafo é feito com bom humor. Assim como quando admite que gostaria de se liberar um pouco do que ela define como compromisso excessivo, com tudo e todos. (A propósito: ela abandonou a religião metodista, e foi atraída por uma linha espiritual de influência oriental, como atesta uma estátua de Buda, em casa.)
É de se imaginar que amigos e admiradores insistam sempre que Magda Soares pode relaxar um pouco porque já realizou muito. Um dos maiores motivos de orgulho da professora emérita é a implantação, na década de 60, do Colégio Universitário, fruto de lei que determinava que as instituições criassem um curso para a transição do antigo científico para o ensino superior. Junto com o professor Hélcio Werneck, ela elaborou o projeto pedagógico da nova unidade, que por sua vez orientou o desenho da construção do prédio (pouco depois ele passou a abrigar a FaE). “Fomos modelo para muitas outras universidades pelo Brasil, mas a experiência durou apenas uns cinco ou seis anos”, ela conta.
Magda não reclama de excesso de trabalho. “Sou feliz, gosto de viver, por isso me mantenho ativa”, ela diz. Sobre a fase atual, ela só não gosta muito da posição de quem se dedica muito mais a palestras e conselhos (isso inclui Capes, CNPq e a Comunidade Europeia), recebe prêmios e homenagens, e tira muitas fotos com fãs-discípulos a cada evento. Anseia por mais convites para mesas-redondas, discussões. De preferência, com gente de opinião diferente. “Hoje, se as pessoas discordam de mim, disfarçam bem”, ela brinca. Também por isso, Magda Soares se realiza em Lagoa Santa. “As professoras dizem: ‘Magda, não dá certo’. Não posso ficar sentada sobre o conhecimento.”