Pesquisa e Inovação

‘Temos caminho articulado, da pesquisa básica à indústria’, diz Ricardo Gazzinelli

Professor do ICB e coordenador do INCT Vacinas explica esforço da UFMG e parceiras para desenvolver vacina contra a Covid-19

Um dos muitos brasileiros que ainda não conseguiram retornar ao país por causa das restrições de circulação impostas pelo esforço contra a disseminação do novo coronavírus é o professor Ricardo Tostes Gazzinelli, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG. Ele cumpria sua temporada anual de dois meses na University of Massachusetts, nos Estados Unidos, onde leciona e pesquisa – com foco em imunologia de doenças infecciosas, como a malária – e aguarda a retomada dos voos regulares para o Brasil. De forma irônica, o Sars-CoV-2 interfere (sem gravidade, felizmente) também na vida de um cientista que pode ter papel crucial na prevenção da Covid-19.

Coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) em Vacinas, Gazzinelli é um dos líderes de projeto que une a UFMG, a Fiocruz, a USP e o Instituto Butantã com o objetivo de desenvolver uma vacina contra a Covid-19. Também pesquisador da Fiocruz e professor visitante na USP de Ribeirão Preto, detentor de distinções das fundações Rockefeller e John Simon Guggenheim, e títulos de Comendador e da Grã-Cruz da Ordem de Mérito Científico, entre outras, Ricardo Gazzinelli aborda nesta entrevista a pesquisa que pode levar à imunização, a história de sucesso da UFMG no campo das vacinas e o movimento do que ele chama de revalorização da ciência.

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Gazzinelli: vírus Influenza e Sars-CoV-2 têm comportamentos semelhantesSBI

Qual é a base de conhecimento que sua equipe utiliza para o desenvolvimento da vacina contra a Covid-19?
Desde 2005, temos uma plataforma que utiliza o vírus Influenza atenuado, que não se replica. Ele infecta a célula, induz a resposta imune, mas não contagia. Introduzimos genes de outros patógenos, como o Tripanossoma cruzi, e esse sistema tem funcionado relativamente bem. Temos conhecimento consolidado sobre a vacina contra Influenza, um modelo estabelecido. O Sars-CoV-2 e o Influenza infectam os mesmos tecidos, têm comportamentos semelhantes, o que indica que o tipo de resposta imune que o Influenza induz também proteja contra o Sars-Cov-2.  A ideia é que nossa vacina seja bivalente, ou seja, que proteja contra a gripe provocada pelo Influenza e contra a Covid-19.

Qual é o caminho para o desenvolvimento da vacina e em que prazo ela poderá estar pronta?
Nessa fase do trabalho, que deve durar ainda cerca de três meses, estamos introduzindo no vírus Influenza um gene do novo coronavírus, mais especificamente a proteína chamada Spike. Na etapa seguinte, vamos testar a resposta imune de camundongos a esse vírus atenuado e modificado. Se ficar demonstrado que os modelos experimentais estão protegidos contra o Sars-Cov-2, partiremos, possivelmente daqui a um ano, para o escalonamento – a fase piloto, em que já se produz da forma em que uma vacina é distribuída para aplicação – e, então, para os testes de segurança, com camundongos e coelhos, para verificação de aspectos como efeitos colaterais. Uma previsão é que daqui a dois anos comecem os testes em humanos, que devem duram mais um ano, aproximadamente.

O que leva os cientistas a acreditar na possibilidade de se chegar à imunização contra o novo coronavírus?
É uma doença nova, e conhecemos muito pouco sobre ela. Mas sabemos bastante sobre outras infecções parecidas, o que nos possibilita fazer inferências. Conhecemos também duas características indesejáveis do Sars-CoV-2: trata-se de um vírus que se transmite muito rápido, por isso a necessidade de as pessoas ficarem isoladas, e que é capaz de provocar doença grave, tanto em idosos e em outros pacientes de risco como em pessoas jovens e saudáveis. Acreditamos que é possível chegar à vacina, em primeiro lugar, porque em grande parte das viroses controladas por anticorpos (sarampo, poliomielite, caxumba), as pessoas ficam imunes, uma vez recuperadas da infecção. E cremos que isso seja verdade também para o Sars-CoV-2. Em segundo lugar, porque o novo coronavírus, diferentemente do Influenza e do HIV, tem baixa taxa de mutação, ou seja, a sequência do genoma muda pouco, e a proteína do vírus reconhecida pelos anticorpos neutralizantes é conservada. Por fim, os estudos sobre os outros coronavírus já nos revelaram que a Spike é a proteína para a qual devemos desenvolver o anticorpo neutralizante.

A UFMG tem história de sucesso quando se trata de vacinas, o que é crucial nesse momento...
Sim, grupos da imunologia, da microbiologia e da parasitologia têm grande competência no estudo da resposta imune. A vacina contra a leishmaniose, desenvolvida na UFMG, foi responsável pelo maior volume de royalties revertidos para a Universidade. Há grupos trabalhando em vacinas para a dengue, esquistossomose. Temos massa crítica muito importante. E ainda contamos com parceria muito profícua com a Fiocruz.

CT Vacinas:
CT Vacinas está dedicado integralmente a diagnóstico e prevenção da Covid-19CT-Vacinas

O que é o CT Vacinas e como está sua estrutura para esse esforço contra o Sars-CoV-2?
O CT Vacinas é a sede física do INCT Vacinas, que está localizada no BH-TEC [Parque Tecnológico de Belo Horizonte]. Enquanto o INCT contempla a pesquisa básica e provas de conceito, o CT, que une a UFMG e a Fiocruz, é focado no desenvolvimento e na prototipagem de produtos. Muitas de nossas pesquisas terminam em produtos que chegam ao mercado, por meio de empresas novas ou já consolidadas.

No CT-Vacinas, todos os recursos humanos e materiais estão dedicados agora ao desenvolvimento de testes diagnósticos e da vacina para Covid-19. Recebemos do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações recursos da ordem de R$ 18 milhões para as redes de vacina e diagnóstico, dos quais em torno de R$ 6 milhões devem ser aplicados na pesquisa realizada no CT-Vacinas. Precisamos, urgentemente, ampliar nosso espaço, porque será necessário contratar novos pesquisadores e instalar outros equipamentos.

Vacinas desenvolvidas em instituições diversas podem ser usadas na prevenção da doença?
Sim, há diversas instituições e consórcios, como o nosso, trabalhando com essa finalidade. Naturalmente, nem todos os projetos terão sucesso, alguns vão ficar no meio do caminho. Cada empresa vai querer ter sua vacina, e haverá espaço para todas, porque a demanda será enorme, devido às prováveis dimensões monumentais das campanhas de vacinação. Estamos confiantes no nosso trabalho porque temos caminho articulado, da pesquisa básica à indústria.            

O senhor disse que o CT Vacinas passou a se dedicar apenas à Covid-19, e certamente isso está acontecendo em muitos laboratórios em todo o mundo. Que outras mudanças acredita que essa pandemia esteja provocando?
Do ponto de vista científico, é tudo muito novo, há pouquíssimos resultados conclusivos. Mas o conhecimento está evoluindo muito rápido, graças ao esforço concentrado em vários países na pesquisa em epidemiologia, patogênese, prevenção, diagnóstico, tratamento. Outra mudança importante é a revalorização da comunidade científica e da própria ciência, no Brasil. Mais recursos estão sendo aportados, e as universidades e outras instituições de pesquisa assumiram a liderança nesta guerra. Por exemplo, os laboratórios de análises clínicas não têm a competência necessária para elaborar testes diagnósticos, e isso está a cargo das universidades, que proveem para hospitais e laboratórios públicos. E está claro que a comunidade científica responde rapidamente, como aconteceu também na epidemia provocada pelo zika vírus. Cientistas e instituições vinham sofrendo ataques em diversos países. A diferença entre Estados Unidos e Brasil, por exemplo, é que aqui [EUA] o apoio à pesquisa é política de Estado, enquanto aí no Brasil essa questão não está resolvida de maneira sólida. Fica-se mais à mercê dos governos, mas estamos vendo que os recursos aparecem outra vez, com a motivação dessa grave crise.

Itamar Rigueira Jr.