Opinião

Como as universidades brasileiras prepararam-se para enfrentar a covid-19

Em artigo, Santuza Teixeira, do ICB, sustenta que a resposta rápida e eficaz só foi possível graças aos continuados investimentos em infraestrutura e formação científica

Kit sorológico para covid-19 desenvolvido pelo CT Vacinas em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz
Kit sorológico para covid-19 desenvolvido pelo CT Vacinas em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz Divulgação

Ingressei na UFMG como professora adjunta em dezembro de 1996. Antes disso, eu havia estudado e trabalhado como docente auxiliar na Universidade de Brasília, feito um doutorado na Universidade de Lausanne, na Suíça, com uma bolsa de estudos paga pelo CNPq, e atuado como bolsista de pós-doutorado na Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, graças ao financiamento do Howard Hughes Medical Institute, fundação privada que apoia pesquisas nos EUA e em outras partes do mundo.  Durante todos esses anos, desde o meu ingresso no ensino fundamental do Centro Pedagógico da UFMG até o pós-doutorado na Universidade de Iowa, meus pais nunca precisaram custear meus estudos. Se tivesse de arcar financeiramente com a minha formação, essa soma hoje certamente chegaria a quase R$ 500 mil.

A consolidação da minha carreira como professora e pesquisadora na UFMG também foi um longo e caro processo de aprendizado. Ao mesmo tempo que compartilhava, nas aulas, o conhecimento sobre bioquímica e biologia molecular adquirido ao longo de décadas de estudo, meu grupo de pesquisa, formado por alunos de graduação e pós-graduação, era treinado para responder a perguntas sobre a biologia de microrganismos causadores de doenças humanas. Desde a aprovação dos primeiros recursos para os projetos de pesquisa que coordenei no Departamento de Bioquímica e Imunologia, estimo que a UFMG tenha recebido quase R$ 10 milhões, entre financiamentos pagos por agências de fomento estaduais e federais como a Fapemig, o CNPq, a Capes e a Finep e organismos internacionais como a OMS, o NIH e o próprio Instituto Howard Hughes.

Histórias como a minha são extremamente comuns no meio acadêmico. Milhares de docentes que hoje atuam nas universidades públicas brasileiras seguiram trajetórias semelhantes: todos passam por um longo período de treinamento e pela necessidade de financiamento contínuo para as suas pesquisas acadêmicas. Milhares de docentes-pesquisadores também investiram enorme capital humano na forma de horas de estudo e trabalho durante a sua formação e a vida acadêmica, que frequentemente vão bem além de 40 horas semanais, com poucas folgas nos fins de semana.

Entretanto, uma cobrança equivocada para o retorno imediato do investimento em pesquisa científica tem colocado as universidades públicas em uma posição cada vez mais fragilizada nos últimos tempos. Muito já se discutiu sobre o papel da ciência básica e a necessidade de investimento governamental na formação de pesquisadores e a realização de suas pesquisas, especialmente em um país como o nosso, que ainda tem um imenso e urgente déficit educacional. Minhas propostas de estudar o genoma e a função de proteínas que controlam a expressão gênica nas células invariavelmente recebiam das agências de fomento comentários que ressaltavam a necessidade de deixar mais óbvia a probabilidade dos resultados se transformarem na cura de uma enfermidade, como a doença de Chagas. O fato das minhas pesquisas terem gerado avanços no conhecimento científico, terem sido divulgadas em centenas de trabalhos publicados em revistas lidas no mundo todo e resultado na formação de dezenas de novos e brilhantes pesquisadores parecia não ser suficiente para justificar a confiança depositada pela sociedade no grande investimento feito em mim e na UFMG. Esse retorno, me parece, ficou agora mais claro com a pandemia de covid-19.

Comparável às grandes mobilizações estudantis das décadas de 1970 e 1980, esse movimento em busca de soluções para a pandemia já se mostrou capaz de operar enormes transformações e produzir grandes resultados em poucos meses.

Desde fevereiro de 2020, quando as primeiras notícias alarmantes sobre uma nova infecção respiratória chegavam ao país, começou uma mobilização jamais vista de docentes, pesquisadores e alunos de nossas universidades. Comparável às grandes mobilizações estudantis das décadas de 1970 e 1980, esse movimento em busca de soluções para a pandemia já se mostrou capaz de operar enormes transformações e produzir grandes resultados em poucos meses. Com aulas suspensas e pesquisas interrompidas em razão da necessidade do distanciamento social, muitos docentes, alunos e funcionários optaram por não ficar em casa. Em março, a nossa equipe do CT-Vacinas, um laboratório da UFMG criado e instalado no Parque Tecnológico de BH, começou a fazer os primeiros testes de RT-PCR para diagnóstico da covid-19. Em seguida, outros grupos de pesquisa no ICB, nas faculdade de Medicina e de Farmácia e na Escola de Veterinária começavam também a transformar os seus laboratórios em fábricas de testes. Essa não é uma mudança trivial, mas, como fomos treinados a encontrar respostas a perguntas onde quer que elas estejam, sabíamos como adaptar os nossos padrões aos protocolos internacionais levando em conta as condições existentes na UFMG. Mais ainda: soubemos criar novos protocolos e propor mudanças nos testes que pudessem reduzir os custos e a nossa eterna dependência de insumos importados de países onde já não havia material suficiente para os seus próprios testes.

Diante da urgência, alunos e professores adaptaram as suas rotinas de longas horas de trabalho e folgas semanais reduzidas para processar, o mais rapidamente possível, amostras da população das nossas cidades que eram cada vez mais fortemente atingidas pela pandemia. Como se não bastasse, decidimos entrar no campeonato mais disputado do planeta, o do desenvolvimento da vacina contra a covid-19.

A experiência vivida na UFMG é parecida com a de outras universidades país afora. Segundo dados da Andifes, em maio de 2020, pelo menos 46 universidades federais estavam empenhadas em algum tipo de esforço destinado não somente ao diagnóstico e ao desenvolvimento de testes mais rápidos e mais baratos, mas também ao mapeamento dos genomas das linhagens virais, para a busca de novos tratamentos, para a elaboração de sistemas informatizados de processamento de dados epidemiológicos, para a fabricação de álcool em gel e ventiladores mecânicos e – talvez o maior desafio – para a produção de uma vacina contra a covid-19 totalmente desenvolvida no território nacional.

Essa não é uma mudança trivial, mas, como fomos treinados a encontrar respostas a perguntas onde quer que elas estejam, sabíamos como adaptar os nossos padrões aos protocolos internacionais levando em conta as condições existentes na UFMG.

Essa rápida resposta não teria ocorrido sem uma enorme vontade das pessoas de enfrentar desafios. Entretanto, mesmo havendo essa vontade, o impulso de nos colocar na linha de frente não bastaria se a Universidade não estivesse preparada. De nada nos adiantaria esse engajamento na luta contra o coronavírus se o CT-Vacinas da UFMG não contasse com uma infraestrutura de equipamentos, material e pessoal treinado para manipular patógenos, fazer reações de PCR e Elisa, produzir e detectar anticorpos em camundongos, clonar genes e sequenciar genomas, manipular vírus e bactérias. A resposta tinha que ser rápida, não tínhamos meses para começar a aprender como fazer, mas poucos dias para começar a obter resultados. A resposta veio porque a Universidade se preparou ao longo de muitos anos, graças ao esforço daqueles que estiveram aqui muito antes da minha chegada. Essa resposta veio porque muitos colegas fazem muito além daquilo que está definido nos seus planos de trabalho, muito além das aulas e correção de provas. Como estamos acostumados a repensar nossos trajetos e frequentemente não descrevemos em nossos relatórios exatamente aquilo que estava previsto para ser executado, soubemos agir rapidamente quando a covid-19 chegou. Mas houve essa resposta rápida principalmente porque recebemos ao longo de anos a confiança da sociedade depositada na forma de recursos financeiros para as nossas pesquisas, sem que o retorno estivesse muito claramente definido. Agora que esse retorno está mais evidente, esperamos ser essa a lição mais importante que a universidade possa dar aos seus alunos – uma lição que os próprios alunos saberão ensinar para os que virão.

Por fim, esperamos que a sociedade e seus governantes sejam convencidos do verdadeiro papel de uma instituição como a UFMG e tenham a certeza de que, em momentos particularmente difíceis como os de hoje, ela estará sempre aberta e preparada para os novos desafios que certamente já estão sendo gerados em algum lugar.

Santuza Maria Ribeiro Teixeira / professora do ICB e coordenadora do CT-Vacinas