Opinião

Convite a viajar em tempos de mobilidade espacial restrita

Geógrafa com formação pela UFMG escreve que viajar é exercício diferente do consumo, um deslocamento que se faz de ‘dentro para fora’

Trecho da lendária Rota 66, no estado de Arkansas, nos Estados Unidos:
Trecho da lendária Rota 66, no estado do Arizona, nos Estados Unidos: estrada é o cenário do clássico 'On the road', de Jack Kerouac Georgia D. Griffiths / Wikimedia Commons

A restrição da mobilidade espacial foi a resposta dada na maior parte dos países para desacelerar o contágio do coronavírus. Assistimos, nas últimas semanas, ao fechamento de aeroportos e estradas. Até mesmo cerramos as portas das nossas casas. A assombrar-nos, um ser invisível aos olhos humanos que, do interior da China, ganhou o mundo, circulando pelas avenidas das grandes cidades, ocupando interiores de aeronaves, sendo passageiro em mãos que outrora se apertavam, saltando nas gotículas de água emitidas pelo ato de falar e caminhando de outras múltiplas formas. Não há a menor dúvida de que o viajante global do momento é o coronavírus.

Os holofotes estão direcionados a esse ser móvel, a esse vírus-viator, ainda que o espetáculo seja o anúncio de mortes em massa e, muito provavelmente, consequência de limites cegamente alargados na relação entre nós (sociedade) e a natureza. Não deixa de ser irônico pensar que estamos privados de quase toda forma de mobilidade espacial para frear a viagem de um vírus que, como tantos outros, passou a nos acompanhar.

O contexto da pandemia é tenso, é grave e, pelo caráter de excepcionalidade, constitui uma oportunidade para considerar outra perspectiva sobre o tempo presente. Alguma parte de nós – os que podem fazer o isolamento social – experimenta o período de confinamento como uma alteração no ritmo do cotidiano. Somos levados a rever vários aspectos da nossa rotina, inclusive a importância do deslocamento espacial para o trabalho, o convívio, a saúde, o lazer. Inevitavelmente, o convite também abarca a reflexão sobre a viagem possível de ser praticada em tempos futuros de características ainda desconhecidas. Voltaremos a viajar? Surgirão formas diversas de se fazer viagens e um turismo reinventado?

Antes de projetar o futuro das viagens, convém pensá-las no presente – ou nesse recentíssimo passado. É certo que elas cresceram com o incentivo ao consumo, assumindo uma faceta predatória. O exercício da mobilidade espacial com fins de lazer e turismo, quando desprovido de responsabilidade social e ambiental, é tão maléfico quanto outros modos de consumo. O ritmo frenético de movimentação acabou bloqueando outros sentidos relacionados ao ato de viajar que não são tão óbvios.

Em um sentido amplo, viajar independe do mercado turístico e de suas ofertas sedutoras. Independe mesmo de longos percursos com malas nas mãos em aviões ou trens. O que é mais essencial no ato de viajar é a vivência do deslocamento como sensação de olhar para o mundo ao redor com olhos diferentes e para si mesmo no espelho sob uma nova perspectiva. Ora, mas isso exige do/da viajante um enorme sentido de imaginação e de deslocamento mental, além de um esforço para suportar o incômodo do estranhamento. Viajar é um exercício muito diferente do consumo – em que se compra um pacote de viagem com a expectativa de ser transformado de “fora para dentro”. A viagem é, na verdade, um deslocamento de sentido contrário, de “dentro para fora”.

Hoje, podemos estar fincados em casa durante a quarentena e usufruir de todas as vantagens que os meios de comunicação nos proporcionam, inclusive visitar museus de modo virtual ou acompanhar um programa televisivo sobre viagem e aventura. Porém, talvez sigamos pouco viajantes, ainda que esforçados em nos deslocarmos de modo virtual. Com superficialidade, pressa e despreparo interior, nem mesmo dá para aproveitar um itinerário virtual. É preciso que nos perguntemos: qual o nível de entrega que deposito na viagem de agora? Estou realmente no tempo presente ou quero apenas me entreter para que passe rápido esse período de isolamento social e para que eu possa retomar meu frenesi de consumo e de mobilidade espacial? Estou viajando com o objetivo de distração, por puro tédio?

Inevitavelmente, o convite também abarca a reflexão sobre a viagem possível de ser praticada em tempos futuros de características ainda desconhecidas. Voltaremos a viajar? Surgirão formas diversas de se fazer viagens e um turismo reinventado?

 A literatura, arte que como nenhuma outra fertilizou a ideia de viagem, pode nos ensinar a nos fantasiarmos de viajantes, constituindo uma história da qual somos protagonistas. Compor essa narrativa pessoal como um viajante é algo que exige, além de imaginação, uma consciência esclarecida. Antes de partir, é preciso pensar sobre a própria identidade e revê-la no momento de retorno. Na verdade, é necessário entregar-se ao processo de modo profundo e ter abertura suficiente para reconhecer que nenhum viajante é um ser completo e acabado. Para se inspirar, basta revisitar os clássicos da literatura como Odisseia e A divina comédia e relembrar os percalços das viagens e o impacto nas personagens.

De fato, esse é o momento ideal para nos abrirmos para a arte das viagens e investirmos nela como processo terapêutico, intelectual, de conhecimento cultural e com outros sentidos. Momento de nos livrarmos do imperativo do consumo não essencial. Ler os clássicos da literatura com o tema da viagem – disponíveis em plataformas públicas – já é um bom começo de preparação. Assim como ler outros romances e narrativas de todos os tipos que nos provocam esse sentido de viagem. Ler para pensar sobre como aproveitar a sensação de incompletude, de desconforto e de não conhecer o outro que habita esse mundo para o qual o/a viajante se encaminha.

Há também ensaios – A arte de viajar, de Alain de Botton, ou Teoria da viagem, de Michel de Onfray –, textos que estimulam a compreensão e o despertar da sensibilidade para o outro. É preciso calma para amadurecer o sentido da viagem e humildade para reconhecer que o que se apreende sobre um povo, uma cultura ou um lugar especial é sempre uma visão parcial. É apenas um passo para vislumbrar outros mundos que nunca serão descobertos em sua totalidade por um viajante. Isso significa que ouvir, mais do que ver, acrescenta à visão de mundo de quem viaja e possibilita relativizar a autoridade que é atribuída quase automaticamente por muitos que assumem o eu-viajante e que afirmam: “Eu conheço muito bem esse país, pois lá estive várias vezes”. Vale pensar: percorrer lugares é mesmo suficiente para conhecê-los?

Júlia Fonseca de Castro / Doutora e mestre pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da UFMG