Evento traça panorama das pesquisas feitas na Antártica
UFMG desenvolve três projetos na região mais inóspita do planeta
O pedaço de terra mais frio, seco e ventoso do planeta. Um ambiente tão inóspito que não tem nenhum habitante nativo. Trata-se do continente antártico, região repleta de recursos naturais e que será tema do evento Antártica em Minas Gerais: avanços científicos nas áreas de medicina/fisiologia, microbiologia e arqueologia do Polo Sul e sua importância para o Brasil, programado para o período de 27 (terça) a 29 (quinta), com transmissão pelo canal Antártica MG na plataforma YouTube. As inscrições podem ser feitas até o início do evento, e os participantes poderão solicitar certificado desde que preencham formulário eletrônico.
A iniciativa comemora os 200 anos da chegada do homem à Antártida, marco ocorrido em 2019. Devido à pandemia, o evento teve de ser adiado para este ano. Hoje, o Brasil integra o seleto grupo de 29 países membros consultivos do Tratado da Antártida (STA), assinado em 1975. A adesão ao acordo permitiu que o país desse início ao Programa Antártico Brasileiro (Proantar), em 1982.
O evento reunirá pesquisadores envolvidos em diversos projetos que ocorrem na Antártida, como o Programa Antártico Brasileiro (Proantar), os projetos Mediantar e Mycoantar, ambos do Instituto de Ciências Biológicas (ICB), e o Laboratório de Estudos Antárticos em Ciências Humanas da (Leach), sediado na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich).
A programação está disponível no Facebook e no Instagram. Estão previstas duas mesas-redondas por dia (uma pela manhã e outra à tarde), com participação de professores e pesquisadores do Brasil, da Argentina, do Chile, do Peru e da Austrália. As atividades matutinas, chamadas de Mesa educação, são abertas ao público e têm o objetivo de divulgar as pesquisas, principalmente entre estudantes do ensino básico. As atividades do período da tarde, chamadas de Mesa pesquisa, são direcionadas à comunidade científica. Entre os temas que serão discutidos nessas mesas, estão microbiologia antártica, arqueologia antártica, arqueologia e patrimônio antárticos e arqueologia dos foqueiros no século 19.
O Portal UFMG conversou com os professores da UFMG que coordenam o Mediantar, o Leach e o Mycoantar para entender as iniciativas de pesquisa da Universidade no continente mais frio do planeta.
Mediantar
Coordenado pela professora Rosa Maria Esteves Arantes, do Departamento de Patologia do ICB, o projeto multidisciplinar, que teve início em 2013 e se consolidou em 2018, investiga aspectos da interação do homem com o meio antártico por meio de abordagens médicas, biológicas, socioantropológicas e de adaptação ao ambiente.
“Estudamos principalmente os ambientes isolados, confinados e extremos para entender como nosso organismo se adapta a esses locais. Na Antártida, existem diversos desafios fisiológicos, que vão desde a questão ambiental, como o vento que aumenta a sensação de hipotermia e o risco que ela provoca, até a grande incidência de luminosidade no verão e a sua ausência no inverno”, explica.
Como na Antártida não há habitantes fixos, mas apenas comunidades que vão à região para pesquisar ou trabalhar por períodos determinados de tempo, a professora ressalta que, nessas situações, as pessoas estão expostas a ambientes que desafiam o organismo. Segundo ela, seria impossível realizar esse tipo de pesquisa sem estar na Antártida, o que justifica o fato de sua equipe já ter viajado para a região diversas vezes.
“Os pesquisadores que se deslocam para lá estão sujeitos a um ambiente frio, vulneráveis, longe da família e confinados com outras pessoas. Percebemos que o nosso organismo começa a se adaptar já no navio, no percurso para a Antártida. Durante a viagem, já há alterações comportamentais, cognitivas, de humor e hormonais, como alterações da melatonina, que causam distúrbios do sono", explica.
Para realizar as pesquisas, o grupo da professora Rosa Arantes realiza coleta de sangue, saliva e urina dos outros pesquisadores e técnicos que também desenvolvem pesquisas no continente. Esses materiais começam a ser trabalhados nos laboratórios em território antártico, e parte deles é trazida para o Brasil, onde continuam a ser analisados nos laboratórios da UFMG. A professora destaca que a "medicina de extremos", como ela denomina a medicina exercida nesse tipo de situação, ganha ainda mais importância em razão das mudanças climáticas que ocorrem no planeta.
“A mudança climática vai afetar a saúde das pessoas, e a Antártida é um laboratório neste sentido. As situações que ocorrem lá simulam cenários passíveis de acontecer no futuro próximo, então nossos estudos podem ser usados em situações de catástrofes, por exemplo. O conhecimento que produzimos também traz informações úteis para outros ambientes, como as viagens espaciais e de submarinos. Algumas observações de aspectos nutricionais, de lazer e exercício físico podem ajudar muito na adaptação fisiológica do organismo a todo tipo de situação extrema”, conclui a professora.
Laboratório de Estudos Antárticos em Ciências Humanas
Sob a coordenação do professor Andrés Zarankin, do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Fafich, o grupo estuda a relação entre os seres humanos e a Antártida. Os trabalhos tiveram início com estudos centrados nas primeiras ocupações do continente, no século 19. Depois, o foco foi expandido para estudos históricos e antropológicos na região, ampliados até os dias atuais.
Zarankin destaca a importância de estudos na área de Humanas na Antártida, visto que a história oficial da região tem sido construída levando em conta apenas os "grandes desbravadores". “As outras pessoas e grupos que fazem parte da história da Antártida foram invisibilizados ao longo dos anos. Estamos reescrevendo a história dos seres humanos desse continente por meio da cultura material, dos objetos que encontramos por lá”, conta.
O professor explica que a história costuma informar que a Antártida foi descoberta por acaso, mas que as pesquisas do grupo mostram que a chegada do ser humano ao continente está relacionada ao sistema capitalista. O grupo chegou a essa conclusão por meio da coleta de materiais encontrados na região, como estruturas com as quais os caçadores de focas, baleias e lobos construíam seus refúgios. “Realizamos escavações para recuperar esses objetos, lixos antigos, sapatos, roupas, cachimbos, louças. Com esses objetos, somos capazes de construir a história dessas pessoas, trazendo outros protagonistas que haviam sido excluídos da história do continente”, diz.
A relação da chegada do homem à Antártida com o capitalismo ocorre porque as indústrias têxtil e farmacêutica usavam matéria-prima dos animais locais. Eles foram caçados ao longo do tempo, o que levou à extinção de parte das espécies que habitavam o continente. “O ser humano chegou à Antártida no século 19. Na época, um navio caçava cerca de 30 mil focas. Dez anos depois, só era possível encontrar 15 mil, o que mostra que 85% da população animal da região havia sido dizimada”, conta Zarankin. O professor acrescenta que a caça foi proibida no continente, o que tem permitido a recuperação das espécies animais. Hoje, a pesquisa é a única atividade permitida no continente.
“Queremos entender a relação do sistema de exploração capitalista com um lugar abundante em recursos e sem nenhuma regulamentação, como aconteceu na Antártida. Reconstruir a história dessa região é importante para entender a forma como os seres humanos se relacionavam com esse ambiente e como essas relações se transformavam. No início, a Antártida era um espaço marginal onde o homem explorava seus recursos. Depois, ela tornou-se um espaço de desbravamento. A partir de meados do século 20, a região transformou-se em espaço de preservação ambiental. Temos aqui um mesmo território com três histórias distintas e que precisam ser mais bem conhecidas.”
Mycoantar
Coordenado pelo professor Luiz Henrique Rosa, do Departamento de Microbiologia do ICB, o projeto surgiu em 2014 e prospecta substâncias na Antártica que podem resultar em produtos de interesse biotecnológico, como antibióticos, herbicidas menos agressivos ao meio ambiente e surfactantes, entre outros. O grupo participa das expedições ao continente e realiza coleta de amostras de solo, neve, plantas e musgos. Os fungos das amostras são isolados e identificados, de forma a terem seus interesses biotecnológicos avaliados.
Luiz Henrique Rosa explica que parte das amostras, como gelo e neve, é processada no navio de pesquisadores na Antártida. Já as amostras de solos, rochas e sedimentos são trazidas para o Brasil e analisadas nos laboratórios da UFMG. No momento, o grupo dedica-se à identificação das substâncias coletadas. “Um dos trabalhos mais adiantados refere-se ao isolamento de uma levedura que se mostrou forte candidata a ser usada como probiótico”, conta.
O Mycoantar reúne a maior coleção mundial de fungos isolados da Antártica, com cerca de 18 mil exemplares. O professor destaca que essa amostra tem enorme potencial de pesquisa. “Por estar muito próxima do Brasil, a Antártida interfere no nosso país e na América do Sul. Ela é a única região do mundo que não pertence a ninguém, mesmo as suas riquezas naturais não pertencem a nenhuma nação do planeta. Há organismos desconhecidos na Antártida que precisam ter seus potenciais revelados", defende o professor.