Opinião

Fora do armário e dentro de casa?

Integrantes do Grupo Diverso, da Faculdade de Direito, refletem sobre os direitos humanos de pessoas LGBT+ na pandemia

Parada LGBT em Belo Horizonte:
Parada LGBT em Belo Horizonte: das ruas para a casaPrefeitura de Belo Horizonte

O orgulho LGBT+ encontra nas ruas o palco mais importante de suas lutas. É na pulsão transformadora delas que se deram – e renovadamente se dão – as batalhas históricas por reconhecimento e inclusão de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, pessoas intersexuais e queer. O espaço público assume formas particularmente fortes para essas pessoas. Existir nele é existir fora dos limites do segredo, da vergonha, das paredes físicas e simbólicas que são erguidas e reerguidas ao redor de quem tem sexualidades e identidades de gênero fora dos padrões. Padrões de uma sociedade que torna norma o que é heterossexual e cisgênero. Não que a violência não se dê também no espaço público – pelo contrário, ela é muito recorrente –, mas a luta e a resistência atravessaram as décadas ocupando essas mesmas ruas. 

O mês de junho vem sempre reativar e fazer avançar essas pautas, colorindo de arco-íris inúmeras cidades do Brasil e do mundo. As ruas, o fora de casa, o comum, o compartilhado, tudo é, aí, mais uma vez reclamado. Estamos aqui e daqui não sairemos, eis o recado dado e repetido. Um resistir para existir. O orgulho público, insubmisso, que não se deixou e não se deixará conter.

Em 2020, o orgulho de junho vem diferente de muitas formas. O imperativo no enfrentamento da pandemia da Covid-19 é fortíssimo: se puder, fique em casa. Mas o que significa esse “fique em casa” para as pessoas LGBT+? E o “se puder”? Que casa é essa para a qual se deve voltar? Que rua é essa da qual se deve momentaneamente sair? E o que nossa universidade tem que ver com isso? A nossa ideia aqui é pensar sobre essa aproximação entre a conquista do espaço público pelo orgulho LGBT+ e o recolhimento imposto pela pandemia. Com base nisso, queremos refletir especificamente sobre como a crise tem afetado essas pessoas, muitas das quais são estudantes, servidoras, trabalhadoras e professoras desta Universidade. Para tanto, levantamos as principais questões que têm aparecido nas pesquisas, conversamos com algumas lideranças sobre essas temáticas em Belo Horizonte e somamos as nossas percepções.

O gesto da saída, do estar fora, dizíamos, é central para as vidas de pessoas de gêneros e sexualidades dissidentes. Fora dos padrões compulsórios de uma normalidade socialmente produzida com muita violência, muitas delas vivem o processo de saída dos armários como podem, quando podem, se podem, para se afirmarem de múltiplas formas. Nesse processo, contudo, algo é bastante recorrente. A saída do armário envolve uma conquista de novos espaços, que extrapolam o que está tradicionalmente contido na casa. Trata-se de uma reconstrução ao mesmo tempo política e íntima dos sentidos dos espaços públicos e a ocupação física e subjetiva de novos lugares por esse mesmo gesto. Não que os outros espaços venham com qualquer garantia. Trabalho, escola, rua, universidade, todos eles são também recorrentemente lugares de clausura e violência. Mas eles apresentam novas fissuras e possibilidades, da identificação, do experienciar, do ser e do resistir para ser.

Por isso, esse voltar para a casa na pandemia pode ser tão difícil. As garantias para uma existência que é permanentemente conquistada podem ser recolocadas em risco. Para as pessoas LGBT+, essa volta não é, nem de longe, um processo homogêneo. Uma travesti negra e pobre experimenta, de maneira geral, a casa e o espaço público de um modo bem distinto de um menino gay branco e rico. Mas talvez haja algo referenciado à posição estrutural (ou às posições estruturais) de pessoas LGBT+ que torne a experiência da pandemia algo sempre particular, no fluxo das condições materiais, subjetivas, do espaço e de seus símbolos, também pela chave do gênero e sexualidade. E passados alguns meses da crise que está diante de nós, algumas dessas dimensões já estão bem evidentes. É delas, como potenciais violações a direitos humanos, que queremos falar.

Para as pessoas LGBT+, essa volta [para casa] não é, nem de longe, um processo homogêneo. Uma travesti negra e pobre experimenta, de maneira geral, a casa e o espaço público de um modo bem distinto de um menino gay branco e rico.

Em tempos de isolamento em casa, muitos estudos já revelam aumento expressivo dos casos de violência doméstica. No caso das mulheres, os registros se avolumam. Mas em relação às pessoas LGBT+, a casa também pode se revelar um espaço de violência física e psíquica. Sandra Muñoz, coordenadora da Casa de Acolhimento Alice Tamietti para mulheres e pessoas LGBT+ em Belo Horizonte, cita a “violência familiar” como uma das origens mais fortes nas demandas da população na pandemia. É bastante comum que pessoas LGBT+, principalmente as mais jovens, sintam-se mais livres e felizes em viver suas identidades entre amigas e pessoas externas às suas próprias famílias. As recomendações de isolamento social interrompem inúmeras atividades e forçam essas pessoas a retornar para lares que, muitas vezes, são intolerantes e opressores.

Em outros casos, questões financeiras também obrigam pessoas LGBT+ a se afastarem de seus pares e grupos e retornar para suas cidades e famílias. Nesse retorno, são recolocadas duplamente em condição de vulnerabilidade – pela dependência econômica e pela violência que, por vezes, vem a ela associada. A interrupção de relações de presença, suporte, de afetividades e de fisicalidade com pessoas de fora da família já seria, em si, um problema expressivo. E ele é maximizado quando, no ambiente doméstico e familiar, violam-se de maneira cotidiana direitos básicos de existência de pessoas LGBT+, que ali estão por pura necessidade.

O presidente do Cellos – Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais, Azilton Viana, fala dessa dupla dimensão, material e subjetiva, imposta pelas medidas de isolamento social. Para ele, as principais demandas que chegam ao Centro “referem-se à questão da sobrevivência, da fome imediata, ou seja, a questão de cestas básicas, a necessidade de moradia e também a questão da empregabilidade”. Ao lado delas, “o isolamento está sendo prejudicial e afetando inclusive a percepção das pessoas, do ponto de vista emocional e afetivo”.

Dentro desse quadro complexo, o retorno à casa, em si, deve acender uma luz para pensarmos em suas peculiaridades para pessoas LGBT+. As condições materiais do isolamento, certamente, devem estar no centro do debate. Um debate que pense sobre quem pode e quem não pode se manter isolado, em virtude das necessidades concretas da existência. Mas também é preciso se perguntar sempre se o que se vê nas casas é o recolhimento para o cuidado, ou, ao contrário, se o que se pode viver é mais violência, sutil ou escancarada.

A essa altura, os efeitos devastadores da pandemia como problema de saúde pública global estão bastante evidentes. No Brasil, os números de contaminações e mortes são o testemunho de um massacre, de muitas formas politicamente tolerado e produzido. E, ao lado deles, a pandemia também agrava outros problemas de saúde, não só física. Para pessoas LGBT+, a temática da saúde mental se recoloca de forma muito importante.

As pessoas LGBT+ têm mais que o dobro de chances de apresentar algum problema de saúde mental durante a vida. A Associação Americana de Psiquiatria confirma que essas pessoas têm taxas mais altas de ansiedade, distúrbios afetivos e transtornos causados por abuso de substâncias.

O ponto de partida, aqui, é a constatação de que problemas afetos à saúde mental já eram maiores entre LGBTs antes do coronavírus. O #VoteLGBT, coletivo formado por profissionais de várias áreas, em parceria com pesquisadoras da UFMG e da Unicamp, realizou pesquisa com mais de 10 mil pessoas em todos os estados brasileiros sobre os impactos da pandemia na vida das pessoas LGBT+. Seus resultados mostram que a principal preocupação das pessoas entrevistadas é “lidar com problemas de saúde mental durante o isolamento social”. Essa questão foi mencionada por 44% das lésbicas, 34% dos gays, 47% das pessoas bissexuais e pansexuais e 42% das transexuais. As pessoas LGBT+ têm mais que o dobro de chances de apresentar algum problema de saúde mental durante a vida. E essa é uma tendência global. A Associação Americana de Psiquiatria confirma que essas pessoas são mais ansiosas e têm distúrbios afetivos e transtornos causados por abuso de substâncias. Estão, ainda, em risco quase três vezes maior de suicídio ou comportamento suicida nos Estados Unidos. Tudo isso, certamente, se repete de alguma forma no mundo e é potencializado pelos quadros da pandemia.

Em muitas das conversas com as pessoas nos fluxos de acolhimento a pessoas LGBT+ em Belo Horizonte, um tema se manteve constante: o da sobrevivência. O pano de fundo, aqui, é o de uma inserção especialmente precária dessas pessoas, mesmo antes da pandemia. Entre elas, os índices de desemprego e vulnerabilidade socioeconômica são particularmente elevados. As pesquisas desenvolvidas pelo Diverso UFMG – Núcleo Jurídico de Diversidade Sexual e de Gênero na parada do orgulho LGBT de Belo Horizonte, nos últimos quatro anos, confirmam esse quadro. E tudo isso é também agravado pela crise de saúde pública que vivemos.

Na pesquisa do #VoteLGBT, 21,6% das pessoas LGBT+ informaram estar desempregadas, índice que seria de 12,2% entre o restante da população. A isso, se acrescenta a grande participação dessas pessoas em atividades típicas do mercado de trabalho informal ou em posições de alta precariedade. É o caso das centrais de teleatendimento, do trabalho terceirizado, do setor da beleza e estética e, ainda, da prostituição. Thiago Alves da Costa, subsecretário de Direito e Cidadania da Prefeitura de Belo Horizonte, destaca que uma das maiores dificuldades está relacionada ao acesso de pessoas trans ao trabalho. E, nesse sentido, segundo ele, “o cenário atual só piora isso ou complica, porque a principal forma de trabalho de muitas delas, que é o trabalho sexual, acaba sendo impossibilitada”. Alexandre Bahia, presidente da Comissão de Diversidade Sexual da OAB/MG, confirma que as principais demandas apresentadas à comissão têm sido relacionadas ao “sustento de pessoas em situação de vulnerabilidade”.

Em todos esses cenários, a pandemia compromete fortemente as fontes de renda de pessoas LGBT+. E essas fontes de renda, para essas vidas, têm importância dobrada, uma vez que garantem um direito a existir como se é. Sem elas, a privação material se faz muitas vezes acompanhada de uma privação das existências livres em gênero e sexualidade.

A pandemia gera velhas e novas formas da violência LGBTfóbica, que está associada ao que se considera socialmente “normal”. O mundo todo tem sido palco de violações graves aos direitos humanos dessas pessoas, e essas violações se individualizam e se concretizam. O caso da colombiana Alejandra Monocuco, mulher trans que morreu em decorrência de complicações relacionadas ao coronavírus em Bogotá ao ter atendimento de saúde negado por ser trans e viver com HIV, é trágico e emblemático. Mas, infelizmente, faz parte do “normal”. Há também violações que confirmam o caráter estrutural da LGBTfobia, como ocorreu em Itaewon, bairro LGBT+ de Seul, capital sul-coreana, que, após apresentar casos de coronavírus, passou a aparecer amplamente na violência discursiva como reduto estigmatizado de pessoas “normalmente” contaminadas. O Brasil, Minas Gerais e Belo Horizonte, como vimos, também têm sido palco de muitas violações.

A pandemia compromete fortemente as fontes de renda de pessoas LGBT+. E essas fontes de renda, para essas vidas, têm importância dobrada, uma vez que garantem um direito a existir como se é.

A Universidade Federal de Minas Gerais, como quase todas as universidades do mundo, enfrenta agora os desafios do retorno às suas atividades, especialmente as de ensino. E o retorno se dará com esse pano de fundo. A necessidade de se pensar a inclusão, o acesso e modos que possibilitam que a experiência de aprendizagem virtual se dê de maneira socialmente referenciada já está posta. Mas esse referenciamento deve ser ainda maior do que parece à primeira vista. Não basta garantir acesso a computadores e conteúdo. Para que se pense efetivamente a inclusão, é necessário contemplar o que há de próprio às multiplicidades das vidas e trajetórias de nossa comunidade LGBT+ na academia. Para essas pessoas, a universidade não é só uma sala de aula, um lugar de aprendizagem formal, uma zona de treinamento; a universidade é reclamada por elas como espaço no qual as diferentes identidades de gênero e sexualidades possam ser vividas e reimaginadas democraticamente.

E o que fazer desse espaço universitário em um momento tão peculiar e difícil? Talvez um primeiro passo seja ampliar as escutas, tentar entender o que tem passado com a nossa comunidade acadêmica LGBT+. Saber se sua conexão à internet é adequada e estável é importante. Mas, igualmente importante, é conectar-se subjetivamente com ela: compartilhar suas dores, angústias, dificuldades e violências experimentadas nesse processo – para entender que direitos humanos dessas pessoas estão expostos a potencial violação e, a partir daí, agir para sua defesa. Tudo isso precisa ser trazido ao centro do debate sobre o que pode ser essa universidade na crise, para que o orgulho LGBT+, a despeito de suas formas momentaneamente virtuais, seja vivido e expandido de maneira concreta.

Marcelo Maciel Ramos, professor da Faculdade de Direito, coordenador do Diverso UFMG – Núcleo Jurídico de Diversidade Sexual e de Gênero, que integra a Rede Direitos Humanos da UFMG

Pedro Augusto Gravatá Nicoli, professor da Faculdade de Direito, coordenador do Diverso UFMG

Caio Benevides Pedra, bacharel e mestre em Direito pela UFMG e mestre em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro. Servidor da Faculdade de Direito e membro do Diverso UFMG

[Contribuíram com a coleta de informações Enrico Martins Poletti Jorge e Tífany Rafaela Cruz Santos, pesquisadoras do Diverso UFMG ]