Heloisa Starling e Lilia Schwarcz contam a história da gripe espanhola, a ‘bailarina da morte’
Em livro publicado pela Companhia das Letras, as autoras mostram o quanto a pandemia de 1918 se aproxima da atual
Um século separa duas pandemias. O tempo decorrido entre elas e as lições que a primeira trouxe para a humanidade poderiam representar vantagens para a geração que enfrenta a segunda, mas a história não é exatamente um curso linear. Negligência, negacionismos, teorias conspiratórias e as desigualdades que hoje caracterizam o combate à covid-19 repetem, em larga medida, alguns fenômenos associados à pandemia de gripe espanhola, que assolou o mundo no fim da segunda década do século passado.
O diálogo entre essas duas épocas assombradas por crises sanitárias de alcance planetário dá o tom de mais uma empreitada de fôlego das historiadoras Heloisa Starling, professora da UFMG, e Lilia Schwarcz, da USP, que publicaram, pela Companhia das Letras, o livro A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil. Seu lançamento está previsto para esta sexta-feira, dia 9.
O título da obra está relacionado ao fato de a doença, entre os vários nomes que ganhou, ter ficado conhecida como “gripe bailarina”, em razão da velocidade de mutações de seu agente causador e da forma rápida e perversa com que “deslizava” para o interior das células do hospedeiro, desfigurando e matando suas vítimas em cerca de três dias.
No livro, as autoras revisitam as experiências das capitais que mais contribuíram para a chegada e disseminação da doença no país, como Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre.
A extensa pesquisa histórica feita pelas autoras revela que, na época, a população e as autoridades brasileiras demoraram a levar a doença a sério – e o preço foi pago com vidas. A gripe espanhola chegou ao Brasil em setembro de 1918, pelo cais de Recife. Em poucos meses, antes mesmo do carnaval de 1919, já havia se alastrado e matado entre 50 e 300 mil pessoas em todo o país.
A medida do desastre
O livro ganha particular relevância ao evidenciar que os erros do passado continuam sendo repetidos por algumas nações na atual pandemia de Sars-CoV-2 – entre elas, o Brasil. No campo da percepção subjetiva, o país tende a entrar na história como uma das nações que lidam pior com a pandemia de covid-19. Em pesquisa recente, divulgada pela Reuters, a gestão brasileira da atual crise sanitária foi considerada a mais ineficiente da América Latina e uma das piores do mundo.
Essa percepção é respaldada pelas estatísticas. De acordo com dados compilados pela Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidas, dona de um dos mais consistentes repositórios estatísticos sobre a covid-19 do mundo, o Brasil é o terceiro país com o maior número absoluto de casos, atrás da Índia e dos EUA – e o segundo em número de mortos, superado apenas pelos EUA. Já no banco de dados do Google, o país aparece como um dos 11 com o maior número relativo de casos (por milhão de habitantes), compondo um “G11” nada lisonjeiro com Andorra, Bahrein, Catar, Chile, Guiana Francesa, Israel, Kuwait, Maldivas, Panamá e Peru.
No índice de número de mortes por cem mil habitantes, listado pela Johns Hopkins, a situação brasileira é ainda pior: no início deste mês, o Brasil superou Andorra, alcançando o quinto posto nessa classificação, superado por San Marino, Peru, Bélgica e Bolívia.
Os números relativos também são desfavoráveis ao país. Enquanto a média mundial de casos por milhão de pessoas é de 4.870, o índice brasileiro é de 26.104. A média global de mortes é de 145 pessoas por milhão, e a do Brasil chega a 702. Esses dados foram coletados na última sexta-feira, 2 de outubro.
Vírus com cor e endereço
Assim como ocorreu em 1918, a atual pandemia também pune particularmente os mais vulneráveis, acentuando uma situação de desigualdade social. “A epidemia escancarou, igualmente, há um século e nos tempos de agora, a perversa desigualdade social brasileira. Como indicam os dados da saúde, o maior número de mortes está concentrado na população de baixa renda. A espanhola atacou ainda mais diretamente as pessoas negras, naquele contexto, recém-saídas do sistema escravocrata. Também hoje, a covid-19 revelou as fraturas sociais e acometeu aqueles que menos condições têm de recorrer a uma medicina preventiva – o vírus continua tendo classe social, cor, endereço e investindo, com especial dureza, sobre a população negra”, anotam as pesquisadoras.
As autoras também veem semelhanças na forma como os governos de hoje e do passado trataram as populações autóctones brasileiras durante as duas crises. “Temos poucas informações sobre o que aconteceu com os indígenas espalhados pelo Brasil em 1918. Encontramos apenas registros esparsos a respeito do que provavelmente ocorreu naquele ano: comunidades e grupos foram deixados de lado, desprotegidos, sem médicos nem remédios. Foram abandonados para morrer. Hoje sabemos que o horror não é diferente. Em agosto de 2020, a covid-19 tinha alcançado mais de 150 povos indígenas no país. [...] O avanço do vírus está acontecendo junto com o projeto de destruição ambiental. [...] As mortes têm cor, classe, escolaridade e local de moradia, seja no Brasil dos tempos da espanhola, seja no país de 2020".
Do cloroquinino à cloroquina
No capítulo em que tratam da disseminação da pandemia do início do século 19, em Belo Horizonte, as autoras registram: “Certas farmácias estavam convencidas de que poderiam vender a cura, independentemente dos resultados. A Drogaria e Farmácia Americana, localizada na Rua da Bahia, em meio ao burburinho da cidade, anunciou um remédio específico e infalível contra a gripe espanhola. Chamava-se cloroquinino e era comercializado em forma de comprimidos. [...] A droga não protegia ninguém contra gripe espanhola – e a farmácia andava vendendo gato por lebre. Há cem anos, como sabiam os médicos, o remédio tinha eficácia para tratamento de outra doença: a malária.”
Lilia e Heloisa indicam a espantosa “coincidência” do remédio daquela época com a falsa panaceia atual – mesmo com a ineficácia da cloroquina e o risco associado a ela já claramente demonstrados cientificamente, o medicamento segue sendo recomendado, em círculos políticos e médicos, para o tratamento da covid-19. “Não há apenas semelhança, coincidência ou mero acaso se compararmos, por exemplo, o uso do sal de quinino e do comprimido cloroquinino, vendido nas farmácias em 1918, e o uso da cloroquina em 2020. Não só a composição dos medicamentos é basicamente a mesma, como seu emprego para debelar casos de malária, em regiões onde a doença é endêmica, repete um mesmo padrão.”
“A prescrição do produto era autorizada pelos médicos, em 1918, apenas para malária e [é] desautorizada pela comunidade científica em 2020 para o tratamento da covid-19, inclusive pelos riscos que pode acarretar ao paciente, mas, ainda assim, a cloroquina continuou (e continua) sendo comercializada e utilizada livremente pela população”, comparam as autoras. “Como se pode notar, nesse aspecto retrocedemos: voltamos no tempo e usamos o mesmo produto que não funcionou há cem anos. Ademais, temos um chefe do Executivo que joga abertamente contra a ciência”, lamentam.
Charlatanismo e teorias da conspiração
As declarações de alguns representantes do poder público durante a atual pandemia de covid-19 têm convidado especialistas ao exame do terceiro capítulo do Código Penal brasileiro, que trata de crimes cometidos contra a saúde pública. Um exemplo é o charlatanismo, tipificado pelo artigo 283 como a prática de “inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível”, quando essa cura não pode ser cientificamente comprovada.
“A experiência da espanhola responde ainda a outra indagação que deve ser formulada nos dias atuais: não se pode distorcer, maquiar ou manipular a realidade de uma epidemia, pois o preço é cobrado em perdas humanas”, argumentam as autoras. Elas criticam o fato de o atual governo “deliberadamente não querer exercer o papel agregador e a coordenação nacional do combate ao vírus, nem gerar políticas públicas e ações centralizadas para combater os efeitos da epidemia no curto, no médio e no longo prazo”. E acrescentam: “O aprendizado com a espanhola indica que nós poderíamos ter criado um plano de enfrentamento da covid-19 e talvez reduzido significativamente os danos causados pela epidemia”, observam as historiadoras.
Ainda que variem de país para país e ao longo das décadas, as chamadas teorias de conspiração parecem encontrar-se numa constante: a intenção de agregar valor negativo a algum grupo étnico ou país, seja por razões puramente xenófobas, seja por razões político-estratégicas. Como ocorre com a atual pandemia, a gripe espanhola também foi turbinada por fartas doses de teses conspiratórias.
À época, houve quem acreditasse e repercutisse, inclusive no Brasil, a ideia de “que a gripe era uma arma química, inventada na Alemanha, fabricada pelo laboratório farmacêutico Bayer e espalhada por espiões que desembarcavam de madrugada dos submarinos alemães nos portos das cidades inimigas e destampavam cuidadosamente os tubos de ensaio repletos de germes”, descrevem as autoras.
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Ontem e hoje: o papel da UFMG
Em seu livro, Lilia e Heloisa também contam como a Faculdade de Medicina da UFMG, fundada em 1911, sete anos antes da chegada da espanhola a Belo Horizonte, assumiu a linha de frente do combate à pandemia. Por decisão da sua Congregação, a instituição “suspendeu as aulas enquanto durasse a epidemia e foi além: transformou o prédio da Faculdade de Medicina em hospital provisório com 112 leitos e serviço clínico em sete enfermarias chefiadas pelos professores e com auxílio dos estudantes”.
As autoras ressaltam a iniciativa sem precedentes durante a catástrofe sanitária, considerado, em particular, o perfil elitista da sociedade belo-horizontina da época, cidade erguida com distinções sociais impressas na sua própria configuração urbanística.
“Para os moradores da cidade era algo inédito: um serviço de hospitalização gratuito com atendimento dos professores e estudantes de medicina e voltado para indigentes, miseráveis e para a população pobre. Em 24 de outubro, o hospital provisório foi aberto à população”, informam, detalhando toda a experiência de combate à doença em Belo Horizonte, cidade a que a doença chegou em setembro, vinda pelos trilhos das ferrovias, do Rio de Janeiro, “destruindo o mito idealizado da cidade salubre”.
Na visão de Heloisa e Lilia, a pandemia deixou um legado que deveria ser aproveitado pela atual geração. “A experiência da gripe também traz um aprendizado sobre o funcionamento de nossa sociedade. Exige reconhecer que esta não funciona se cada um cuidar exclusivamente de si. Sem a identificação com o outro, a sociedade se degrada, perde o sentimento de pertencimento, a noção de responsabilidade mútua, a consciência de que compartilhamos um destino único", defendem as autoras.
Livro: A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil
Autoras: Heloisa Murgel Starling e Lilia Moritz Schwarcz
Editora Companhia das Letras
R$ 59,90 / 368 páginas
Lançamento: 9 de outubro de 2020