Pesquisa e Inovação

Livro de pesquisador da Fafich desvela mecanismos de libertação de escravos no século 18

Douglas Lima, doutorando em História, mostra o contexto e os meandros dos processos de alforria, que eram mais frequentes do que supõe o senso comum

Escritura
Escritura de alforria de Izabel da Trindade: documento foi redigido em 29 de dezembro de 1724 e registrado em 22 de outubro de 1728, em Sabará; Izabel pagou 200 oitavas de ouro por sua libertação, quantia elevada para os padrões da épocaCasa Borba Gato (Museu do Ouro / Ibram)

Quando era aluno de Iniciação Científica, Douglas Lima trabalhava com testamentos do início do século 18, nos arquivos da Casa Borba Gato, em Sabará (MG). Ali, além de ganhar vivência de pesquisa e aprender a decifrar a escrita de documentos antigos, o então graduando em História na UFMG descobria cartas e escrituras que sacramentaram a libertação de homens e mulheres escravizados. Esses registros lavrados em cartório foram objeto de seus estudos no mestrado, cujo resultado acaba de ser publicado no livro Libertos, patronos e tabeliães: a escrita da escravidão e da liberdade em alforrias notariais (Caravana Grupo Editorial).

Douglas Lima conta que se surpreendeu com a grande quantidade de registros. “No imaginário coletivo, e aí eu me incluía, as alforrias seriam raras, legalizadas por documentos muito especiais. Mas o que encontrei foram registros nada solenes”, afirma o pesquisador.

Segundo ele, a libertação de escravos era ainda mais comum em Minas Gerais, o que está relacionado a “uma economia extremamente dinâmica, movida pela fabulosa produção de ouro, sobretudo até meados do século 18”. O historiador lembra que diversas regiões da capitania eram urbanizadas, e pequenos comércios e prestação de serviços empregavam mão de obra escrava e liberta. “As chamadas negras de tabuleiro, por exemplo, vendiam comida, repassavam parte dos ganhos a seus senhores e guardavam o restante. Situações como essa ajudam a explicar por que a maioria das alforrias era comprada por mulheres”, diz o autor.

Lima observa que, nos registros, as informações sobre o pagamento são acompanhadas por outras justificativas para o negócio. Era comum que os patronos mencionassem o “amor católico” com que a pessoa havia sido criada em sua casa. “Eles se apresentavam como pessoas caridosas, bons cristãos, acreditavam que o gesto era um caminho para a salvação de suas almas”, descreve.

Douglas Lima, na Casa Borba Gato:
Douglas Lima, na Casa Borba Gato: pesquisador lê e interpreta com desenvoltura documentos antigosAcervo pessoal

O tabelião e as cláusulas
Os documentos analisados por Douglas Lima mostram a complexidade dos processos de libertação, protagonizados pelo patrono e pelo liberto, naturalmente, mas também por dois outros personagens: o tabelião e o requerente. O primeiro, segundo Douglas, tinha papel estratégico e um grande poder, propiciado pela capacidade de ler e escrever, que já representava muito numa sociedade iletrada, mas principalmente por dominar as normas jurídicas e cartoriais. O requerente aparecia em muitos casos como representante do proprietário que concedia a liberdade.

Chamaram a atenção de Douglas as cláusulas e condições constantes das cartas e escrituras. Alguns acordos determinavam que o liberto deveria continuar servindo seu patrono enquanto este estivesse vivo ou permanecesse na região – essa condição aplicava-se sobretudo aos portugueses que previam a volta à terra natal. “Eram vários os caminhos e as possibilidades. Às vezes, mesmo após a liberdade obtida formalmente, a relação, na prática, se mantinha como era antes. Em alguns casos, no extremo oposto, cessavam quaisquer vínculos entre as partes”, comenta o pesquisador, enfatizando que os processos ocorriam em ritmos e contextos variados.

Homens e mulheres alforriados encontravam alguma chance de mobilidade social, diferentemente do que sugere a imagem de estratificação e hierarquização da sociedade brasileira dos anos 1700, mas, como ressalta o pesquisador, essas pessoas não deixavam de sofrer preconceito. “A transição da escravidão à liberdade era muito dura. Além de comprar a alforria, as pessoas pagavam pelo registro – os tabeliães cobravam valores por vezes altíssimos –, tinham de arcar com os impostos sobre libertos e ainda passavam a bancar seu sustento”, enumera Douglas Lima. “A situação de alguns libertos era muito frágil, eles eram tidos como elementos de desordem e risco social.”        

Paleógrafo
O professor Eduardo França Paiva, que orienta Douglas Lima desde a graduação – hoje ele cursa o doutorado, ainda na UFMG –, destaca a habilidade do pesquisador para a leitura e decifração do texto jurídico e notarial antigo, o que tem sido fundamental para os estudos das escrituras e cartas de alforria, entre outros documentos. Douglas foi, por sinal, um dos criadores da Oficina de Paleografia, na Fafich.

Capa do livro:
Capa do livro: personagens, processos e possibilidadesDivulgação

Douglas Lima conta que, desde que começou a frequentar os arquivos, transcreve integralmente os documentos, preservando ao máximo a ortografia, a gramática e as características gráficas. “É um trabalho demorado e minucioso, que possibilita uma observação ampla das relações sociais e do contexto dos atos jurídicos, sem o filtro dos critérios atuais. Dessa forma, o próprio documento guia a pesquisa, e grandes descobertas decorrem desse procedimento”, explica, acrescentando que o livro contém várias transcrições completas.

O doutorando considera que a visão sobre o passado escravista ainda desconsidera personagens, processos, possibilidades e o significado das alforrias. “Minha preocupação foi entender os mecanismos cotidianos dos registros de libertação, como aquilo acontecia na prática. Lanço sobre a documentação um olhar diferente, que procura a forma como eram costurados os acordos e como diferentes categorias sociais se articulavam para produzir a libertação”, afirma o pesquisador, que atualmente se dedica a investigar, entre outras questões, as mudanças por que passaram, ao longo do século 18, alguns dos personagens que ele encontrou nas cartas e escrituras de alforria guardadas na Casa Borba Gato, de Sabará.                   

Livro: Libertos, patronos e tabeliães: a escrita da escravidão e da liberdade em alforrias notariais
Autor: Douglas Lima
Editora: Caravana Grupo Editorial
229 páginas | R$ 49,90

Itamar Rigueira Jr.