Arte e Cultura

Livros traduzem a existência e dão sentido aos primeiros anos de vida

Em bate-papo na Festa do Livro UFMG, especialistas falaram sobre literatura infantil e seu poder de ajudar as crianças a expressarem seus medos e emoções

Tânia Cristina Dias, Rosana Mont'Alverne e Telma Borges em bate-papo na Festa do Livro UFMG
Tânia Cristina Dias, Rosana Mont'Alverne e Telma Borges em bate-papo na Festa do Livro UFMG Foto: Raphaella Dias | UFMG

"As pessoas sempre estão se perguntando sobre o papel da literatura. Hoje, a gente escuta muitos professores da educação infantil falando que tal livro é bom para trabalhar tal coisa. Eu concordo que os livros têm papel, sim. Não é que os livros não possam ter caráter pedagógico, eles não podem ter intenção pedagógica. Concluir uma leitura já é algo que dá autoestima por si só", afirmou Rosana Mont'Alverne, proprietária da editora Aletria e contadora de histórias, na abertura do último bate-papo da Festa do Livro 2024 da UFMG, realizado nesta quinta-feira, 14.

Debaixo da tenda da Praça de Serviços, Rosana, a escritora e psicóloga Tânia Cristina Dias e a professora da Faculdade de Educação da UFMG Telma Borges discutiram a autoestima infantil e a influência da literatura nesse campo. Após discorrer sobre as quatro camadas de leitura – decodificação, compreensão, interpretação e avaliação –, Rosana acionou Bakhtin, o filósofo russo, para falar do papel fundamental que ela exerce no desenvolvimento humano: "Pelo caráter dialógico da literatura, a interação que ela causa faz você querer compartilhar. É por isso que o livro pode ser considerado perigoso."

Stand da Editora Aletria na Festa do Livro 2024 da UFMG
Estande da Editora Aletria, na Praça de ServiçosFoto: Raphaella Dias | UFMG

'Esse sapo tinha medo de ser ele mesmo'
A psicóloga Tânia Cristina, autora de O sapo iluminado (Aletria, 2021), deu detalhes de um projeto desenvolvido em uma escola em Contagem, onde a bibliotecária leu seu livro para crianças de 9 e 10 anos. "O sapo iluminado fala do medo. O medo é existencial. Esse sapo tinha medo de ser ele mesmo. Vocês conhecem algum humano assim?", provocou a escritora. Quando a bibliotecária perguntou às crianças sobre seus medos, Tânia disse que as respostas foram dos mais diversos tipos. "Algumas crianças tinham medo de ser esquecidas pelos pais. Alguns tinham medo da morte. Um disse que tinha medo de não saber quem ele é", exemplificou ela, ao listar alguns medos. Sheila, a bibliotecária, seguiu com o projeto de conversar sobre emoções com as crianças e recebeu até uma confissão de tentativa de suicídio.

Tânia passou a auxiliar Sheila em seu projeto. Ao dissecar um pouco mais seu livro, ela chamou a atenção para o tema do empoderamento, isto é, o ato de poder fazer algo. "Imagina o que significa para uma criança que lê um livro sobre medo, poder falar e ser ouvida de forma respeitosa sobre o que esconde lá dentro, que só falaria em consultórios e clínicas de terapia", refletiu a autora.

Nascer em estado de poesia
A pesquisa de Cristiane Galvão, cujo doutorado foi concluído há pouco tempo na Faculdade de Educação da UFMG, foi mencionada pela professora Telma. Cristiane, que trabalha com literatura para bebês, diz que todo mundo nasce em estado de poesia. E o que seria o estado de poesia? Telma explicou que "nós somos introduzidos num código cultural, e esse código cultural vai sendo gradativamente assimilado, e, assim, nós vamos nos humanizando, nos civilizando como sujeitos. A poesia é aquilo que nos conecta com outra dimensão, e é por meio da linguagem que a gente a alcança."

Telma Borges, professora da Faculdade de Educação da UFMG
Telma Borges, da Faculdade de Educação: poder para falar do próprio medoFoto: Raphaella Dias | UFMG

"Quando a criança nasce, ela é introduzida no mundo da linguagem, por meio de códigos. Estudiosos do campo da psicologia afirmam que a criança, quando nasce, ela é. Chega um momento em que ela pensa que é. E o mundo vai dizer para ela que ela é alguma coisa. Vai dizer que ela é amada, bonita, inteligente. Mas também vai dizer que ela é feia, gaga, míope. E isso vai ajudando a criança a construir uma ideia de si mesma, porque a nossa identificação, a nossa identidade, ela se dá no processo de identificação com o outro", acrescentou Telma. Em dado momento, prosseguiu, a criança começará a pensar que ela é o que o mundo diz dela e, a depender de como foi estimulada, pode se mostrar uma criança agressiva, raivosa, ou amorosa, educada, gentil. É nesse processo que a criança vai construindo sua autoestima.

Compreender a si pelo 'outro'
Sobre o papel da poesia, Telma relembrou o crítico Antônio Cândido e o processo de efabulação: "O contato da criança com a literatura favorece uma experiência de efabulação que a reconecta, em certa medida, com esse estado de poesia e a ajuda a compreender o que é estar no mundo. Esta literatura pode vir a ser entendida como um outro, no qual ela se mira e, ao se mirar, constrói sua percepção." A professora acredita que as crianças precisam ser estimuladas desde muito cedo a ter contato não só com o livro, mas com contação de histórias, músicas, parlendas e manifestações literárias que não estão contidas no material escrito. Esse estímulo deve ser diário, nos ambientes doméstico, escolar e cultural. 

O monstro das cores (Aletria, 2018), livro trazido para o Brasil da Catalunha por Rosana Mont'Alverne, já é uma trilogia. O protagonista é uma espécie de monstro verde, com traços semelhantes aos de crianças, que chama a atenção delas por se aproximar do universo infantil. Em 2018, ao traduzir o livro de Anna Llenas, Rosana não imaginava que se tornaria a obra mais vendida da Aletria. "O monstro das cores diz respeito a identificar e nomear uma emoção, porque muitas vezes a criança não sabe ou não consegue nomear o que está sentido. Nem a gente [os adultos] consegue nomear tudo", lembrou Rosana. Os outros dois volumes são O monstro das cores vai à escola (2020) e O monstro das cores: doutor das emoções (2023).

'O monstro da cores': como identificar e nomear uma emoção
Livros ajudam a identificar e nomear uma emoção Foto: Raphaella Dias | UFMG

Palavras que fazem existir
Com as emoções em pauta, a psicóloga Tânia Dias alertou o público sobre o perigo do uso de telas digitais por crianças e bebês: "O bebê não tem noção de profundidade. Isso somado ao consumo da tela fria tira a capacidade do cérebro, que é plástico até em torno dos 20 anos, de desenvolver novas conexões." 

Ao fim do bate-papo, Tânia perguntou se havia na plateia alguém com lembrança de algo que ocorreu antes dos três anos de idade. Não houve relatos. A autora partiu para a resposta, que resumiu o encontro: "A gente não se lembra do que viveu antes dos três anos porque não tínhamos palavras para traduzir a nossa existência. Um livro como O monstro das cores traduz a nossa existência. A literatura nos faz pensar quem somos, para onde vamos e porque estamos aqui."

Beatriz Tito Borges