'Lugar da rebeldia, cidades devem estar preparadas para produzir encontros', diz Fernando Haddad
Professor da USP ministrou a aula inaugural da Escola de Arquitetura no semestre
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Foto: Foca Lisboa / UFMG
Na aula inaugural ministrada na quarta-feira, 22, na Escola de Arquitetura da UFMG, Fernando Haddad, professor de Ciência Política da USP e ex-prefeito de São Paulo, convocou os estudantes de arquitetura, urbanismo e design da Universidade a pensar a cidade de forma ampla, para além das ideias prontas sugeridas pelo establishment.
“Vocês podem ser protagonistas de coisas importantes que estão aprendendo nesta grande Universidade que é a UFMG: coisas que vão impactar a vida das pessoas. Vocês podem fazer a diferença”, disse ele. “Então façam, sim, os seus projetos de prédios, de casas, mas não abram mão de pensar o futuro das cidades, onde moram mais de 50% da humanidade. Pensem que vocês podem dialogar não apenas com os contratantes dos projetos, mas também com as futuras gerações”, convocou.
Considerando a arquitetura um campo de conhecimento situado na confluência entre saberes, Haddad pediu que o calouro da área não abra mão de “sonhar sociabilidades” no decorrer de sua formação e de sua atuação profissional. “Vocês são portadores de um conhecimento que vai interessar cada vez mais aos gestores públicos e aos movimentos políticos”, disse. “Percebam que as cidades precisam ser justamente o lugar que desmonta o senso comum, que desmonta os preconceitos, que desmonta os dogmas. A cidade moderna nasceu contra o poder tradicional, contra a tradição. A cidade é o lugar da rebeldia”, demarcou.
Interessado na especificidade do diálogo que aquela aula propiciava, o professor rememorou a sua relação com esse campo do conhecimento, de modo a discutir a experiência da arquitetura como arte, a qual só incorporou mais tarde em sua trajetória. “E hoje entendo que a arquitetura não é só uma arte. Ela é uma arte por trás da qual há toda uma reflexão, todo um pensamento – talvez mais do que em qualquer outra arte. Falo de um pensamento sobre modos de vida, sobre sociabilidade, sobre convivência: há uma dimensão política e uma dimensão técnica da arquitetura que fazem dela um saber muito diferenciado. Talvez por isso ela seja [um campo do conhecimento] tão difícil de classificar”, opinou. “Por isso, insisto: vocês estão efetivamente em um lugar privilegiado de observação. Não é retórico dizer que vocês podem fazer a diferença."
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Vários alunos de outros cursos se deslocaram até a Escola de Arquitetura para assistir à aula inaugural. Dada a procura, a atividade foi ministrada no saguão da Unidade, e não no auditório, onde foi transmitida por um telão. Os dois ambientes ficaram lotados, incluindo a bela escadaria interna. Além disso, 1,1 mil pessoas acompanharam pela internet a fala do ex-prefeito, transmitida ao vivo pelo Portal UFMG.
Crise e oportunidade
Um dos principais assuntos tratados por Fernando Haddad em sua aula foi, naturalmente, a sua experiência à frente da maior cidade da América Latina, São Paulo. O ex-prefeito fez uma rápida genealogia da recente história brasileira, de forma a perscrutar nela o contexto que lhe possibilitou implantar as medidas tomadas na capital paulista.
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Haddad retomou as manifestações de junho de 2013 como marco, de certa forma inaugural, da crise política hoje vivida no país. “Eu vivi o melhor momento da economia brasileira como ministro da Educação [de 2005 a 2012] e o pior momento [de 2013 a 2016] como prefeito. Contudo, nós conseguimos adotar algumas políticas em São Paulo, no campo do urbanismo e das cidades, mesmo com a turbulência que se vivia no período. Nesse sentido, cabe pensar que, em política, não apenas o tempo bom, mas também o tempo de crise é um tempo de oportunidades. A crise de 2013 abriu uma oportunidade no campo do urbanismo em São Paulo que os outros prefeitos não tiveram à disposição”, disse.
“Por incrível que pareça”, o ex-prefeito continuou, “foi na crise econômica mais severa que se abriu, por meio do diálogo com o movimento social, uma circunstância [para o estabelecimento de um plano diretor ousado]. O lado positivo da crise foi que, como não tínhamos ‘mais nada a perder’, decidimos fazer tudo de positivo que queríamos fazer. O mérito do nosso governo foi não só ter sabido aproveitar a oportunidade, mas também ter-se proposto radicalizá-la, no sentido bom da palavra, o sentido de tomar as coisas pela raiz”, disse.
Haddad resumiu a proposta de sua gestão: compreender os fenômenos urbanos para transformar São Paulo em uma cidade que fugisse da tradição estabelecida no pós-guerra de uma cidade “toda focada no rodoviarismo, na proeminência do carro, na proeminência do privado diante do público, uma cidade em que calçadas são a soma de acessos a garagens. Ou seja, uma inversão completa da lógica do que seja, de fato, uma cidade", disse Haddad. E acrescentou: “Tentamos criar formas de a cidade se subsidiar para manter a sua diversidade”.
Imprensa versus reputação
Apesar de reconhecida e premiada internacionalmente, a gestão de Fernando Haddad em São Paulo sofreu forte e constante crítica da imprensa regional. Sobre isso, o ex-prefeito criticou certa obtusidade da imprensa paulista – em especial, a radiofônica –, que, segundo ele, trabalhou para impedir que sua gestão criasse uma reputação na sociedade pelas ações realizadas.
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“Vivemos um tempo em que as pessoas não estão abertas a mudar de opinião – mesmo diante de evidências. Você mostra o dado e elas ainda assim não mudam”, disse. “Isso lembra uma realidade medieval. Eu penso em Galileu Galilei, como que dizendo: ‘veja, olhe aqui no telescópio [a prova de que é a Terra que gira em torno do Sol, e não o contrário]’, e seu interlocutor diz: ‘não, não vou olhar. Não vou olhar nem vou discutir esse assunto’. Estamos vivendo esse momento em que os assuntos não estão mais sendo discutidos. E se a gente deixar essa mentalidade imperar em nosso modelo de cidade, vamos piorar muito a nossa situação política”, alertou.
Para o ex-prefeito, que em sua exposição não poupou a esquerda nem a direita de suas críticas, esse impedimento de construção de reputação foi um dos principais fatores que atuaram contra a popularidade de sua gestão, não lhe facultando assim a possibilidade de disputar um segundo mandato com condições de vencer. Sobre isso, Haddad comentou: “Ocasionalmente, me perguntavam: mas por que você não esperou para tomar todas essas medidas em seu segundo mandato? E eu não via sentido nisso, afinal, há sempre uma possibilidade de não vencer e de não conseguir realizar aquilo que se planejou. Então, por que eu deveria correr o risco de perder a oportunidade de realizar aquilo que acredito ser o melhor para a cidade?”, refletiu.
O ex-prefeito recorreu mais uma vez à imagem da Renascença para ilustrar as posições tomadas em seu mandato e para aconselhar os calouros em relação ao caminho que devem trilhar em suas carreiras. “Galileu Galilei tem uma belíssima frase daquela época em que o heliocentrismo começava a ser discutido. Ele falou: ‘A verdade é filha do tempo’. Portanto, se você está seguro do que está fazendo, aja. Se você estiver certo, o tempo vai lhe dar razão”, disse à plateia.
O político elogiou o papel da militância urbana que ascendeu no país nos últimos anos. Segundo Haddad, sua gestão só pôde levar à frente suas propostas em razão do ativismo dos movimentos sociais mais vanguardistas. “Os militantes da cidade podem não ser ainda a maioria da população, mas quem disse que a maioria está sempre certa? Às vezes, vale mais a pena ser uma minoria com futuro do que uma maioria falida. Eu prefiro fazer parte da minoria portadora de futuro. Vocês serão os protagonistas da mudança”, afirmou.
![Foto: Foca Lisboa / UFMG Haddad foi recebido na UFMG pelos diretores da Escola de Arquitetura (nas extremidades da mesa) e pelo reitor e pela vice-reitora da UFMG](https://ufmg.br/thumbor/4bW0zCgQbDl82COn-lTXT1mnnz8=/0x0:3005x2003/712x474/https://ufmg.br/storage/5/3/8/c/538ce8d4a65d75d9be11f5f62ec96fa1_14902933154364_958251711.jpg)
Haddad também lembrou o sociólogo Max Weber, “que dizia que antes das cidades o que existia era uma visão de mundo em que as esferas de valor não tinham sequer autonomia em relação às outras. Nesse contexto, você tinha a ciência subordinada à mesma autoridade que a arte, que era subordinada à mesma autoridade que a política. Ou seja, não havia esferas autônomas de valor”, destacou.
“Hoje, no entanto, a arte moderna tem um grau de autonomia: ela não presta contas nem para a ciência, nem para a política. Ela não presta contas para nenhuma autoridade, apenas para si mesma e, evidentemente, para quem goza da obra de arte. Onde nasceu essa liberdade que a modernidade nos trouxe? Quem contestou o poder tradicional? Foram as cidades. Então, a pior coisa que pode acontecer para uma cidade é ela não se constituir de forma a manter uma interação produtiva com o cerne da sua existência. As cidades têm de estar preparadas para produzir encontros”, demarcou.
Lugar de educação
Fernando Haddad foi recebido na UFMG pelo reitor Jaime Ramírez, pela vice-reitora Sandra Goulart Almeida, pelo diretor da Escola de Arquitetura, Maurício Campomori, e pela vice-diretora, Rita Velloso. Na recepção ao professor da USP, Ramírez elogiou a gestão de Haddad no Ministério da Educação, destacando o seu “brilhantismo e envergadura intelectual”.
“Tivemos Gustavo Capanema, tivemos Darcy Ribeiro – que ficou pouco tempo à frente do Ministério – e tivemos a felicidade de, em tempos mais recentes, conhecer a dimensão [política] do cidadão Fernando Haddad”, disse, fazendo do substantivo “cidadão” uma espécie de adjetivo. “Trata-se de alguém que olhou para a educação como um todo”, afirmou.
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“Haddad mostrou ao país que nós não precisamos colocar nenhum setor da educação competindo com o outro; ele mostrou que a educação é um investimento, não um gasto. E mais do que isso: ele proporcionou uma visão estratégica de país a partir da educação”, disse Ramírez, sob o olhar concordante dos demais membros da mesa. “Eu não tenho a menor dúvida de que devemos à sua visão e sobretudo à sua coragem política tudo o que, do ponto de vista da expansão estrutural, nós vivemos na UFMG nos últimos anos”, disse o reitor.
Sobre o seu período como ministro, Haddad afirmou, em outro momento de sua exposição, que a UFMG exerceu grande protagonismo. Segundo ele, as políticas públicas – de expansão e de inclusão – foram capitaneadas, em boa medida, por professores da Universidade. “Na rede federal, que é muito grande, a UFMG teve papel de liderança no processo de transformação da educação superior", reconheceu.
Em suas considerações finais, o reitor Jaime Ramírez enfatizou que a Universidade precisa novamente se mobilizar e resistir às ameaças de desmonte. “O caráter de universidade pública e gratuita da UFMG corre risco. Vamos aprender a resistir por meio das boas ideias e com base em bons exemplos, tais como os que esse grande cidadão [Haddad] sempre nos proporcionou. Enquanto estivermos na direção da UFMG, a vice-reitora Sandra Goulart Almeida e eu defenderemos que a Universidade continue pública e gratuita, de forma a servir à nossa sociedade”, disse, aplaudido pela audiência.
Após a aula, o professor Fernando Haddad concedeu entrevista à TV UFMG, na qual abordou, entre outros assuntos, os 90 anos da Universidade e o papel político dos novos arquitetos na construção das cidades contemporâneas. "Não queremos artistas, apenas; queremos pensadores das cidades", defendeu.