Pesquisa e Inovação

Em livro, Maria Esther Maciel reflete sobre a presença dos animais na literatura

Obra completa trilogia em que a professora apresenta o seu libelo contra a hierarquização dos seres vivos estabelecida pelo homem; lançamento será neste sábado

A palavra “animal” tem uma espécie de impertinência implícita – um vício de origem, na medida em que visa “enjaular”, num substantivo singular e homogêneo, um conjunto de viventes que é plural e diverso. Para piorar, esse é um conjunto do qual o homem curiosamente se exclui, ainda que seja, biologicamente, também um animal – um ser vivo multicelular, com capacidade de locomoção e de resposta a estímulos, que se nutre de outros seres vivos.

Novo livro de Maria Esther Maciel completa trilogia sobre o tema dos animais na literatura
Novo livro de Maria Esther Maciel completa trilogia sobre o tema dos animais na literatura Imagem: Reprodução de capa

Para demarcar normativamente essa distinção dos humanos em relação aos animais não humanos, os dicionários então arbitram, dizendo que o termo “animal” se refere àqueles que são “irracionais”, por oposição à racionalidade do homem. “São significados que marcam não apenas a cisão entre homem e animal, como também excluem o humano dos domínios da animalidade e desqualificam o não humano”, lembra a poeta e professora aposentada da Faculdade de Letras Maria Esther Maciel.

O problema dessa normatização é que a distinção entre o homem e os demais animais, estabelecida nesses parâmetros, não se sustenta cientificamente, na medida em que já se comprovou, de diferentes formas, a subjetividade animal e a sua singular racionalidade. Em um de seus livros, publicado em 2010, o filósofo da ética animal e ambiental Marc Lucht, professor no Virginia Tech, nos Estados Unidos, explica as razões da manutenção dessa distinção mesmo em um contexto em que ela já se comprovou cientificamente frágil.

Escreve Marc Lucht: “a demonstração da convencionalidade ou arbitrariedade da distinção entre homem e animal poderia revelar as escoras morais em jogo na manutenção dessa distinção – nós nos distinguimos ontologicamente dos animais para justificar nosso uso deles como recursos –, assim como as conexões entre a dominância humana dos animais e as estruturas de poder patriarcais, aristocráticas, oligárquicas e colonialistas.”

Atributos nobres
Paralelamente, abundam relatos que demonstram a presença, nos animais, de atributos como compaixão, generosidade e racionalidade (ao passo que a impiedade e a insensibilidade ao padecimento alheio se mostram diariamente evidenciadas nos homens). Maria Esther lembra, por exemplo, o caso do cachorro que, ao ver outro ser atropelado em uma avenida, corre para salvá-lo, puxando-o pelo asfalto até a calçada, para tirá-lo do meio do trânsito.

A professora Maria Esther Maciel, convidada de agosto do Encontro Marcado.
Aposentada pela Faculdade de Letras, Maria Esther atua como professora colaboradora na UnicampFoto: Acervo pessoal

Naturalmente, não se trata de um caso isolado – registros semelhantes abundam na internet, com diferentes espécies. “São exemplos de gratidão, amor, amizade, compaixão, solidariedade. Algo que a literatura vem mostrando há muito tempo”, demarca a pesquisadora, aludindo a um campo a que ela tem dedicado os seus esforços de investigação nas últimas duas décadas.

“Se a ciência ignorou o óbvio ao longo dos séculos, os escritores e artistas nunca duvidaram das potencialidades animais. Felizmente, muitos cientistas, hoje, já reconhecem e legitimam a consciência animal, como atestaram, há poucos anos, 13 neurocientistas de Cambridge, incluindo Stephen Hawking, ao admitirem que os humanos não são os únicos seres do planeta a ter consciência, sentimentos, atos intencionais e inteligência. Algo que Darwin já havia afirmado em seus livros. Ou seja, enfim a ciência reconhece oficialmente o que muitos escritores e amantes dos animais sempre souberam: os animais também têm neurônios e coração”, marca a pesquisadora.

A declaração acima integra entrevista concedida por Maria Esther Maciel em 2020. Ela está reproduzida ao fim de Animalidades: zooliteratura e os limites do humano (Editora Instante, 2023), livro que a pesquisadora acaba de tirar do prelo. Após dois lançamentos em São Paulo, realizados no início do mês (aposentada pela UFMG, Esther atua hoje como colaboradora na Pós-graduação em Teoria e História Literária da Unicamp), o livro será finalmente lançado em Belo Horizonte neste sábado, 17 de junho, na Quixote Livraria, que fica na Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi. A sessão de autógrafos começa às 11h.

O volume completa uma trilogia sobre o tema. Há alguns anos, Esther publicou Literatura e animalidade (Civilização Brasileira, 2016), livro em que parte de filósofos como Michel de Montaigne, Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Giorgio Agamben – e de escritores como Franz Kafka, Jorge Luis Borges e J. M. Coetzee – para ampliar os horizontes dessa discussão sobre o lugar do animal na atualidade. Quase uma década antes, ela havia inaugurado suas publicações sobre o assunto com o ensaio O animal escrito: um olhar sobre a zooliteratura contemporânea (Lumme Editor, 2008), texto em que começa o seu rastreio, na história da literatura ocidental, disso que se tem configurado como uma verdadeira “história literária dos animais”.

O ponto de vista animal

Em Animalidades: zooliteratura e os limites do humano, Maria Esther se detém “nas subjetividades não humanas no âmbito da filosofia, da etologia – ramo da zoologia voltado para pesquisas sobre comportamento animal – e da literatura, entre outras áreas do conhecimento, com incursões em narrativas e poemas que priorizam o ponto de vista animal, seja na forma de um ‘eu’ poético, seja na apresentação dos bichos como protagonistas e/ou narradores, em interação paradoxal com humanos. A noção de ‘zoo(auto)biografia’”, ela explica em uma nota introdutória ao livro, “emergiu dessa abordagem, possibilitando-me uma entrada mais efetiva na esfera ficcional de obras que se apresentam como histórias de vida ou relatos memorialísticos de animais.”

Na obra, uma série de ilustrações justapõem animais e ossos humanos, de modo a lembrar 'aquilo que nos une àqueles que compartilham o mundo conosco e fazem parte do mesmo reino biológico que nós'
Na obra, ilustrações justapõem animais e ossos humanos, de modo a lembrar 'aquilo que nos une àqueles que compartilham o mundo conosco e fazem parte do mesmo reino biológico que nós' Foto: Ewerton Martins Ribeiro | UFMG

O livro está dividido em duas partes, às quais se soma a reprodução daquela entrevista. Os cinco capítulos da primeira são (com exceção do primeiro, introdutório) integralmente dedicados aos cães, animal privilegiado em seus estudos – seja por sua preponderância na produção literária de todos os tempos (lembremos, a título de exemplo, da “Baleia”, de Graciliano Ramos, da “Karenin”, de Milan Kundera, de “Argos”, de Homero, ou de “Kachtanka”, de Tchekhov), seja pelo apreço particular que a autora tem pelo bicho (toda a sua reflexão sobre as animalidades é atravessada pela lembrança da vira-lata “Lalinha”, cadela de ascendência cocker spaniel que a acompanhou por cerca de 15 anos). “Logo após sua morte, decidi me concentrar nos cães, inaugurando uma nova etapa em minha investigação. Comecei, então, a procurar os cães que atravessaram e atravessam a literatura, desde a Antiguidade clássica. Digo que encontrei um verdadeiro canil literário”, relembra.

Na segunda parte do livro, Esther se dedica à literatura brasileira moderna e contemporânea, com ênfase nas “poéticas e políticas” da natureza no século 21. Essa segunda seção é composta de três capítulos. No primeiro deles, a pesquisadora aborda os paradoxos da animalidade nas obras de Hilda Hilst – escritora que, no seu entendimento, “acreditava que o puro ofício de viver, nos seres não humanos, cumpre-se de maneira mais plena” – e Clarice Lispector, que Esther considera “uma das vozes animalistas mais instigantes da literatura moderna brasileira”, ao lado de Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade e da própria Hilda Hilst. Sobre a última, Esther lembra que a escritora compartilhou sua vida com inúmeros animais na mitológica Casa do Sol, chácara em que viveu no estado de São Paulo – entre eles, mais de cem vira-latas solidariamente acolhidos nas ruas.

Sobre Clarice, Esther anota: “Ela não se vale literariamente dos animais com propósitos exclusivamente metafóricos nem os submete aos artifícios excessivos do antropomorfismo. Os animais na obra de Clarice são animais mesmo, em sua condição de viventes e, muitas vezes, submetidos aos atos de crueldade humana. Ao torná-los personagens, ela explora tanto a complexidade que os define como seres quanto os paradoxos que definem nossas relações com eles. Além disso, mostra, de maneira perturbadora, como a animalidade do humano se manifesta em tais relações.”

O segundo capítulo dessa segunda parte do livro é dedicado à obra de Carlos Drummond de Andrade, em que “a sensibilidade perante a vida penosa dos seres não humanos foi manifestada de forma recorrente, em verso e prosa, ao longo de toda a sua trajetória literária, sobretudo a partir de 1954, quando iniciou sua parceria com Lya em torno da defesa dos bichos". A Lya em questão é Lya Cavalcanti, amiga jornalista de Drummond que se dedicava à defesa dos animais.

Naquela época, conta Maria Esther, muitas das crônicas que Drummond publicava funcionavam como reforço ou eco às campanhas que Lya fazia no programa Dois dedos de prosa, da Rádio Ministério da Educação. No último capítulo, por fim, a pesquisadora faz um apanhado das manifestações literárias mais contemporâneas do tema dos animais, ocasião em que aproveita para enfatizar a urgência da preservação da Amazônia em razão também de sua fauna.

Livro: Animalidades: zooliteratura e os limites do humano
Autora: Maria Esther Maciel
Editora Instante
176 páginas | R$ 69,90 

Ewerton Martins Ribeiro