Opinião

[Opinião] Cultura do silêncio beneficia sempre o opressor, nunca o oprimido

Em artigo, a professora Vanicléia Santos, da História, sustenta que a violência racial deve ser combatida por pessoas com influência, de todos os setores

Genivaldo Santos e George Floyd:
Genivaldo Santos, no Brasil, e George Floyd, nos EUA, morreram nas mãos de agentes do EstadoReprodução | Redes sociais

Em algumas horas, no dia 24 de maio de 2022, a polícia do Rio de Janeiro executou a tiros 23 pessoas no Complexo da Penha. Quais são os nomes? Não sabemos. Dificilmente, os jornais vão mostrar a foto daquelas pessoas e fazer uma pequena biografia de cada uma. Não haverá esforço para humanizar aquela situação, diferentemente do que ocorre quando alguém branco sofre violência.

No dia seguinte, 25 de maio, em plena luz do dia, diante de câmeras, policiais mataram um homem asfixiado com gás ilegalmente lançado no porta-malas do carro da Polícia Rodoviária Federal, em Umbaúba, Sergipe. Genivaldo de Jesus Santos tinha 38 anos. Assim como George Floyd, exatos dois anos antes, nos Estados Unidos, Genivaldo morreu porque não podia respirar, nas mãos de agentes do Estado.

Poderia citar aqui centenas de exemplos e lembrar a chacina do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, na qual, em algumas horas, a polícia matou quase 30 pessoas, em 6 de maio de 2021. Um ano depois, os moradores organizaram um memorial para seus parentes. A Polícia Militar, num ato de total desrespeito, usou um carro blindado, chamado de “caveirão”, para remover o monumento com os nomes das vítimas.

Para não me estender muito e não ficar localizada apenas no Rio de Janeiro, as chacinas são comuns também em Salvador, mas a mídia tradicional não dá às demais cidades o mesmo tipo de enfoque dedicado a Rio e São Paulo. Faz sete anos que a PM matou 12 rapazes no bairro Cabula, na capital da Bahia. A maioria foi executada, conforme mostraram os laudos, mas o governador do estado gritou “gol!”

Faz muito tempo que, no Brasil, está dado aos policiais o direito de matar pessoas pobres e não brancas. A pena de morte não existe no país, mas policiais podem matar pessoas livremente em suas operações. Agentes que deveriam nos defender se sentem autorizados a nos matar.

Como já escrevi outras vezes, aprender os nomes das pessoas assassinadas, individualmente ou em grupo, é uma forma de a sociedade civil lutar para desnaturalizar essa violência, que é seletiva e programada, pois atinge diretamente as pessoas mais pobres, negras, pardas e indígenas.

A violência do Estado Nacional contra pessoas negras é assunto que diz respeito a todo mundo. Mas, em geral, são as pessoas negras que puxam essa bandeira. E esse é o ponto para o qual quero chamar a atenção: as pessoas brancas devem se manifestar porque são as mais beneficiadas pelo Estado que tem o racismo contra pessoas negras como base de sua construção como nação.

É impressionante o silêncio das pessoas que têm poder no Brasil diante da violência contra as pessoas negras. Foram poucos os pronunciamentos de governadores, prefeitos, reitores, diretores de faculdades e escolas, professores, diretores de clubes de futebol, jogadores e artistas com milhões de seguidores, altos funcionários da justiça, empresários, diretores de museus e galerias, pastores, padres, lideranças de todos os partidos e outras pessoas com poder.

Não é esse o momento em que todas as categorias que menciono devem convidar suas comunidades a refletir sobre o impacto desses assassinatos e as questões mais amplas de policiamento racial e justiça social no Brasil como um todo?

O silêncio absurdo de pessoas formadoras de opinião e que ocupam cargos importantes leva à naturalização da violência. Por outro lado, ecoam fortemente as falas de apoio aos opressores. O presidente do Brasil, por exemplo, elogiou os policiais que fizeram a chacina na Vila Cruzeiro: “Parabéns aos guerreiros do Bope e da Polícia Militar do Rio de Janeiro que neutralizaram pelo menos 20 marginais ligados ao narcotráfico em confronto".

Essa fala está estreitamente relacionada às justificativas apresentadas pela polícia: as chacinas e os massacres resultam de confrontos no combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado. Parte da população reproduz esse discurso falso da polícia, e consolida-se a ideia generalizada de que todos que foram assassinados (crianças, adolescentes, mulheres, idosos, transeuntes) mereciam morrer. Seguindo essa lógica macabra, a pena de morte está instituída para pobres no Brasil?

Por outro lado, nos Estados Unidos, governantes, dirigentes de universidades, professores, atletas e artistas “de milhões” e outros ocupantes de postos importantes divulgam cartas públicas em que se manifestam contra episódios de racismo.

Em junho de 2021, presidentes de instituições como Cornell University, Harvard University, Duke University, Princeton University, University of South Florida, Yale University, Brown University, University of Pennsylvania, onde estou, entre dezenas de outros dirigentes de diversas universidades estadunidenses, condenaram a violência policial que matou George Floyd e mata diariamente dezenas de americanos negros, apoiaram os protestos populares e o resultado do julgamento do policial.

Barry Butler, presidente da Embry-Riddle Aeronautical University, fez uma das declarações mais contundentes: "Todos somos dignos e preciosos, independentemente de nossas origens ou diferenças ideológicas (...). A violência nunca é a solução, mas também não podemos ficar de braços cruzados. Em tempos turbulentos, a autorreflexão e a educação podem ser chaves para uma mudança positiva. Por favor, pergunte a si mesmo como você pode alavancar suas conexões, habilidades e conhecimentos específicos para fazer uma diferença positiva — e como o preconceito inconsciente pode afetar seus julgamentos”.

Quando pessoas com algum tipo de poder se manifestam, elas dão mais visibilidade aos fatos e podem contribuir fortemente para a desnaturalização da violência que assola a vida de algumas pessoas, mais que a de outras. Quando membros do Judiciário e do Legislativo, chefes de polícia, reitores (assim como as comunidades universitárias formadas por professores, funcionários e estudantes) e outros estarão juntos para discutir esses problemas? Quando líderes das igrejas vão discutir o genocídio da população negra como um problema social e não uma questão de fé?

Infelizmente, enquanto escrevo este artigo, sabemos que pessoas negras e pardas continuam a viver com medo do racismo e da violência, inclusive das estruturas que devem proteger nossas comunidades e garantir a segurança e a justiça. De acordo com o Atlas da violência 2021, um jovem é morto no Brasil a cada 17 minutos, e 80% deles são mortos pela polícia.

Esses números traduzem o racismo sistemático e estrutural que afeta duramente a realidade de muitas pessoas, desde o período da escravidão no Brasil. O racismo e a violência contra pessoas negras e indígenas são as bases sobre as quais o Brasil foi construído. O silêncio de lideranças ajuda a manter essas bases no mesmo lugar.

Quando pessoas com algum tipo de poder se manifestam, elas dão mais visibilidade aos fatos e podem contribuir fortemente para a desnaturalização da violência que assola a vida de algumas pessoas, mais que a de outras.

Portanto, temos que enfrentar o racismo não apenas no policiamento e no sistema de justiça criminal, mas também em áreas marcadas por desigualdades raciais nos salários, disparidades na saúde pública e pela falta de representatividade negra em postos de decisão de várias esferas da sociedade, inclusive nas universidades.

Conhecemos as muitas maneiras pelas quais o racismo permeia a vida cotidiana de tantos em nosso país e devemos assumir nossa responsabilidade como cidadãos. Por fim, não podemos nos calar em situações como essas a que me referi. A cultura do silêncio sempre beneficia o opressor, nunca o oprimido.  

Junto-me àqueles que estão vivenciando este momento com uma sensação de dor profunda e avassaladora. Há um longo e árduo trabalho que deve continuar para combater o racismo sistêmico, a desigualdade, a brutalidade e a violência contra as pessoas negras e indígenas no Brasil.

Vanicléia Silva Santos | Departamento de História da Fafich-UFMG e University of Pennsylvania (EUA)