Opinião

[Opinião] Política e feminismo: 50 anos de conquistas, desafios e violências

Professora aposentada do Departamento de Comunicação da UFMG reflete sobre as dificuldades que as mulheres ainda enfrentam para se impor em uma arena dominada pelos homens

Branca Moreira Alves, em 1975,
Branca Moreira Alves, em 1975: historiadora é autora de um trabalho clássico sobre a luta das mulheres pelo voto no BrasilFoto: Arquivo pessoal

Foi como se um clarão, um raio, iluminasse a minha existência: o mundo era dividido em classes, e a opressão das mulheres servia ao funcionamento da engrenagem capitalista. Os homens trabalhavam, e as mulheres garantiam a reposição da energia masculina cuidando do lar e dos filhos.

O tal clarão aconteceu no 1º Seminário Feminista, no Rio de Janeiro, em julho de 1975, Ano Internacional da Mulher. Eu tinha 24 anos, peguei uma malinha, pedi uns dias de licença no Jornal de Minas, onde trabalhava como repórter, e fui participar do seminário da Associação Brasileira de Imprensa, intitulado Pesquisa sobre o papel e o comportamento da mulher brasileira.

De lá eu trouxe para Belo Horizonte a ideia de promover uma discussão sobre a "questão feminina", tema ausente em todos os espaços sociais ou culturais. Branca Moreira Alves foi uma das convidadas do Mulher em debate, realizado no DCE da UFMG durante três dias. Ela abordou a história da luta pelo voto feminino no Brasil e na Inglaterra, onde durou cerca de 100 anos, consumindo as energias de várias gerações.

Da UFMG participou a professora Glaura Miranda, da Economia, que falou sobre a desvalorização do trabalho feminino. Outros temas: a prostituição, o nascente movimento feminino pela Anistia, por Therezinha Zerbini, a representação da mulher no cinema (por um jornalista amigo, já que ainda eram poucas as vozes feministas).

Agora, quase 50 anos depois, Branca Moreira Alves volta a Minas para falar do tema da sua tese e livro considerados um clássico, Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. Da mesma mesa, participa a professora Marlise Matos, do Departamento de Ciência Política da UFMG, abordando a questão da violência contra as mulheres parlamentares em Minas e no Brasil. Marlise Matos é responsável pela realização do 1º Seminário Internacional da Mulher, em 2006, na UFMG – iniciativa que se encontra no bojo das manifestações que trouxeram de volta o feminismo de massa à cena política no Brasil.

Marlise Matos:
Marlise Matos estuda a violência política contra as parlamentares mulheresFoto: arquivo pessoal

Quase meio século separa as duas falas, dois momentos do feminismo brasileiro: a reflexão sobre a luta pelo direito de participação na arena pública da política e a realidade, hoje, das mulheres que ousam adentrar nesse espaço ainda tão dominado pelos homens. Nesse tempo, dois contextos políticos se delineiam.

Em 1975, vivíamos a plenitude da segunda onda feminista, e a pauta estava centrada no direito de controle dos próprios corpos, na necessidade de informações sobre cuidados e na contracepção na rede pública (que mal existia). Quase todas muito jovens, queríamos conhecer o nosso corpo, o direito ao prazer. Tudo isso numa ditadura que prendia, desaparecia e matava. Que submetia a imprensa pela censura. E que desmantelou a rede sindical e de lideranças políticas.

As jovens feministas também enfrentaram resistência dentro da própria esquerda: a concepção de luta política entendia que todas as forças deveriam se concentrar na derrubada da ditadura militar (que viria a ocorrer em 1985). Assim, o seminário Mulher em debate foi um gesto de muita ousadia em todas as direções.

Na atualidade, o panorama político mudou muito – mas ainda conserva traços semelhantes. Estamos vivenciando uma democracia – mas sob a espreita do fortalecimento da extrema direita, de sua pauta conservadora de costumes e da ameaça de golpe. Ao mesmo tempo, a terceira onda do feminismo se encontra espraiada pelo mundo, principalmente pela América Latina. A agenda feminista atual se manifesta contra o sexismo em todos os lugares e repudia uma suposta essencialização da mulher praticada pelas feministas da segunda onda (há que se deter se é branca, negra, indígena, homossexual, trans). E as redes sociais dão outra configuração à linguagem e às manifestações.

Certas reivindicações, porém, permanecem em pauta: salário igual por trabalho idêntico, paridade na participação política no Parlamento, direito à interrupção da gravidez.

A entrada e a participação das mulheres na política não representam uma simples soma, elas são um suplemento que perturba e bagunça o conjunto, no caso, a ordem estabelecida.

As mulheres conquistaram o direito de votar no Brasil em 1932, mas o pleno direito de serem votadas é uma batalha que dura até os dias de hoje. Primeiramente, as mulheres têm de ousar desejar ser candidatas, o que, muitas vezes, não é bem visto na sociedade: supostamente vão deixar de lado os cuidados entendidos como precípuos ao sexo feminino com a família (o mesmo argumento que uniu conservadores e liberais no século 19 contra e a favor do voto). Depois, têm de participar de uma campanha eleitoral feroz em que os partidos sabotam a alocação de recursos, usando-as como "laranjas". Finalmente, quando vencem todos os obstáculos e são eleitas, vem talvez a etapa mais feroz: a realidade machista do Parlamento e de setores da extrema direita. Aí as parlamentares enfrentam gestos, falas grotescas nas redes sociais (sempre de cunho sexual e racista) e, no limite, ameaças de morte.

Marlise Matos, professora e pesquisadora do DCP-UFMG, tem-se dedicado nos últimos anos a estudar o que se designou como Violência Política contra as Mulheres em Perspectiva Interseccional (VPCMPI). Na coordenação do Nepem (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher), que celebra 40 anos em setembro, vem realizando estudos e orientações de mestrado e doutorado sobre essa questão. Ela  coordena a publicação de cartilha sobre VPCMI (on-line) para orientação geral e de candidatas e parlamentares.

Em sua edição de junho, o Sábado feminista, parceria entre a Academia Mineira de Letras, o movimento feminista Quem ama não mata e o Nepem UFMG, vai promover uma reflexão sobre a luta pelo voto feminino no Brasil, sua estratégia política de alianças burguesas e a necessidade de enfrentamento da resistência à participação das mulheres na vida pública parlamentar, marcada pelo incômodo que certas políticas ainda trazem a esse espaço tão dominado pelos homens.

Ouso dizer que o incômodo atual da participação política das mulheres é da mesma natureza que o provocado no século 19, numa perspectiva derridiana: a entrada e a participação das mulheres na política não representam uma simples soma, elas são um suplemento que perturba, bagunça o conjunto, no caso a ordem estabelecida. Uma ordem que só beneficia os homens. 

O mesmo raio, o mesmo clarão, continua a iluminar a minha existência.

Serviço
Evento: Sábado Feminista: Feminismo e política: conquistas, desafios, violências
Participação: Branca Moreira Alves, historiadora feminista, e Marlise Matos, professora do Departamento de Ciência Política (DCP) da UFMG e coordenadora do Nepem
Data:15 de junho, sábado, às 10h (abertura dos portões às 9h30)
Local: Academia Mineira de Letras (rua da Bahia, 1466, Lourdes - Belo Horizonte - MG) 

Mirian Chrystus | Professora aposentada da UFMG e coordenadora do movimento 'Quem ama não mata'