Pesquisas demonstram violação sistemática de direitos em penitenciárias de Minas Gerais
Produzidos pela plataforma 'Desencarcera!’, com a participação da UFMG, estudos colecionam centenas de denúncias sobre violações de direitos no sistema prisional brasileiro
“Comida azeda, presos sem água, visitas que viajam 12 horas com criança e não conseguem entrar. Um descaso! Sem falar no kit prisional, que o preso não recebe completo como mandamos. Onde vai parar?”. Essa é uma denúncia feita em fevereiro de 2024 em relação à realidade cotidiana da Penitenciária de Três Corações, em Minas Gerais. Ela é apenas um exemplo de uma ampla e variada realidade exposta por outras 278 denúncias feitas ao longo do primeiro semestre de 2024 sobre as atuais condições de cárcere de algumas dezenas das mais de duzentas unidades prisionais do estado.
As denúncias sobre o sistema carcerário mineiro foram recebidas pela plataforma Desencarcera!, que trabalha pelos Direitos Humanos e pelo desencarceramento dos presos provisórios no estado de Minas Gerais, em razão de o estado não ser capaz de oferecer o mínimo necessário de dignidade a essa população. O Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Cárcere e Direitos Humanos (LabTrab) da UFMG é uma das entidades responsáveis pela plataforma. O relatório que reúne as denúncias foi elaborado pelo programa de extensão Culthis: espaço de atenção psicossocial às pessoas presas, sobreviventes do cárcere, seus familiares e amigos, que se vincula ao LabTrab.
Violação sistemática de direitos
A menção a uma denúncia relativa à Penitenciária de Três Corações no início desta matéria não é aleatória: a instituição liderou o ranking de denúncias recebidas pela plataforma Desencarcera! no primeiro semestre de 2024, com 184 denúncias. O número corresponde a 66,4% do total de reclamações recebidas no período analisado.
Além disso, o mau semestre não foi um ponto fora da curva no histórico dessa penitenciária: na média dos levantamentos feitos pela plataforma Desencarcera! (que recolhe denúncias desde 2018), Três Corações se mantém no segundo lugar entre os presídios com o maior número de denúncias recebidas.
Na média histórica, a “campeã” em denúncias é a Colônia Penal Professor Jacy de Assis, de Uberlândia, uma notória representante da pior realidade prisional brasileira. A relação entre cada uma das 278 denúncias recebidas no primeiro semestre deste ano e as penitenciárias a que elas se referem pode ser consultada na página da pesquisa.
No geral, a categoria mais denunciada foi a de Violação de direitos dos presos, com particular destaque para a subcategoria “falhas e abusos cometidos na gestão da unidade”. As denúncias vão do fornecimento de comida imprópria para consumo à tortura física e psicológica, passando pela cotidiana falta de acesso a itens básicos para a manutenção da dignidade humana e da higiene.
A Violação de direitos de familiares é a segunda categoria com mais denúncias. Os relatos são da realização de procedimentos vexatórios e degradantes durante as visitas, além de abuso de autoridade, maus tratos e tortura psicológica. “Muitos familiares são impedidos de adentrarem na unidade por arbitrariedades da polícia penal, ou mesmo desistem da visita devido às humilhações a que são submetidos”, informa o relatório.
Realizados regularmente, os levantamentos da plataforma Desencarcera! monitoram os sistemas prisional e socioeducativo para compartilhar informações sobre o estado do cárcere no Brasil e disponibilizar materiais informativos sobre essa realidade. Apesar da proeminência das duas instituições citadas, os relatórios expõem uma realidade de desumanidade e maus-tratos que se repete em vários outros presídios do estado, sinalizando para uma cultura estabelecida.
Entre outros índices, essa cultura se traduz no déficit de vagas e na sobrecarga do sistema prisional brasileiro como um todo. De acordo com o mais recente Relatório de Informações Penais (Relipen), do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), divulgado no 1º semestre de 2024, o Brasil tem um déficit de 174.436 vagas no sistema prisional.
Em Minas, o déficit chega a 19.834 vagas, acarretando a superlotação das celas, o que configura uma violação aos direitos básicos relacionados à estrutura. Segundo dados da plataforma Desencarcera!, na Penitenciária de Três Corações, líder de denúncias no período analisado, a ocupação chega a 229% de sua capacidade.
O caso dos migrantes: precariedade agravada
Relatório técnico do LabTrab apresenta perfil sociodemográfico dos estrangeiros recolhidos no sistema prisional de Minas Gerais
No caso dos migrantes estrangeiros que integram a população carcerária de Minas Gerais, em razão da maior vulnerabilidade (geopolítica, econômica) dessa população, é realmente impossível (de forma ainda mais marcada que para os presos nacionais) alcançar a ressocialização por meio da pena privativa de liberdade. A conclusão é apresentada no relatório técnico da investigação Conhecendo a população presa migrante em Minas Gerais: impactos do encarceramento e acesso a direitos, também produzido pelo LabTrab.
Nessa investigação, que também integra o plataforma Desencarcera!, 27 migrantes presos e 24 técnicos sociais de 13 unidades prisionais de Minas Gerais foram entrevistados de setembro de 2022 a junho de 2024. O objetivo era mapear e identificar essa população e entender as especificidades do que é vivido por ela nas penitenciárias do estado. Segundo o LabTrab, a dificuldade com o idioma, a falta de vínculos familiares locais, o desconhecimento da legislação específica e as diferenças culturais tornam os migrantes ainda mais vulneráveis a violações de direitos no sistema prisional brasileiro.
Em verdade, o Conselho Nacional de Justiça garante direitos específicos aos migrantes presos, como a assistência consular, a tradução do seu processo em sua língua nativa e a presença de intérprete em suas audiências e demais situações de interação legal. Entretanto, todos os 27 entrevistados pela pesquisa afirmaram nunca terem sido informados desses direitos – a maioria deles desconhecia totalmente essas garantias. Além disso, a pesquisa verificou que os presos não tiveram garantido seu direito de realizar atividades para remição de pena, em desrespeito ao artigo 126 da Lei de Execução Penal (LEP).
O migrante preso em Minas: um perfil
Conforme levantado pelo LabTrab, a maioria dos migrantes que integram atualmente a população carcerária de Minas Gerais são homens cisgêneros e heterossexuais originários do Sul global (cerca de 78% eram de países da América Latina), com idade entre 18 e 50 anos, escolaridade básica completa e que trabalhavam no momento de sua prisão – mais da metade, contudo, de forma autônoma ou no mercado informal. Segundo dados do Relatório de Informações Penais (Relipen), da Secretaria Nacional de Políticas Penais, no Brasil, como um todo, havia 3.992 migrantes estrangeiros presos no segundo semestre de 2023 – em sua maioria, de fato, pessoas originárias de países sul-americanos.
Apesar da Lei de Execução Penal (LEP) prever assistência médica, odontológica e farmacêutica à população carcerária, essa pesquisa também evidenciou que a assistência efetivamente oferecida aos presos – sejam migrantes ou não – não é nem de longe adequada às suas necessidades. A precarização do acesso à saúde é agravada pela já mencionada superlotação das unidades prisionais – condição em que se encontravam 11 dos 13 presídios visitados por essa pesquisa, em específico –, pela falta de insumos e pelo número insuficiente de profissionais de saúde. A insuficiência de itens básicos pelas unidades prisionais também foi relatada por esses entrevistados, precisando sempre ser complementada por terceiros, como as famílias ou os advogados.
A íntegra da pesquisa do LabTrab sobre os migrantes encarcerados também pode ser consultada na plataforma Desencarcera! Nela, também podem ser encontradas orientações simplificadas sobre normativas do Sistema Prisional, com foco na população migrante presa em Minas Gerais.