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Entrevista com: José Carlos Reis

Identidade brasileira formou-se na diferença

Cento e vinte anos de pensamento histórico brasileiro estão no livro As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, do professor José Carlos Reis, do departamento de História da Fafich. Publicada pela editora da Fundação Getúlio Vargas, a obra reúne análises sobre oito importantes intelectuais brasileiros, do século passado até os dias de hoje.

Além de Varnhagen e Fernando Henrique, o livro abrange a interpretação de pensadores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Em entrevista ao Boletim, o professor fala das abordagens conservadoras e revolucionárias desses autores, aguçando a discussão sobre o que é ser brasileiro. O lançamento será no dia 9, às 19 horas, na Livraria Ouvidor Savassi.

Boletim _ O Brasil vai completar 500 anos, o que parece tornar a discussão sobre a identidade do país bastante recorrente. Como tratar de identidade numa nação tão multifacetada como o Brasil?

José Carlos - O Brasil está mesmo fazendo 500 anos? Há quem diga que não. Para estes, até o início do século 19, esta região da América do Sul era a "América portuguesa", um território sem expressão nacional, sem identidade nova e original em relação à identidade portuguesa. Era um Portugal tropical. Para outros, não. Capistrano de Abreu, por exemplo, procurou identificar no Brasil sertanejo, no Brasil dos bandeirantes paulistas, no Brasil mameluco da agropecuária, no Brasil mulato das minas, manifestações de uma alma genuinamente brasileira. Capistrano busca uma brasilidade em pleno Brasil colonial português. Mas como dizer, formular, expressar e explicitar esta brasilidade? Não se pode ignorar a complexidade dessa questão. A discussão sobre a "identidade" é extremamente difícil e delicada, e construções apressadas e absolutas não fazem avançar o debate. É preciso perceber as diferenças, as fissuras, as amnésias, as exclusões, as repressões internas. Foi o que tentaram fazer os autores selecionados para o livro, que consegue, de certa forma, ir além na construção da identidade brasileira, pois reuniu autores que produziram separadamente e distantes no tempo. Ao colocá-los juntos, o livro faz uma `síntese de sínteses.

B - Como se deu a escolha dos historiadores abordados no livro?

JC - Escolhi Varnhagen, Gilberto Freyre, Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda, Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, porque suas visões de Brasil marcaram profundamente as várias épocas da história brasileira e influenciaram as decisões tomadas pelo Estado e pelos sujeitos históricos brasileiros.

B _ Por que autores dos anos 80 e 90 não foram abordados?

JC - Por duas razões. A primeira é de caráter teórico. Os historiadores não procuram mais construir identidades tão globais e muito menos nacionais. Eles estão mais interessados nas diferenças do que na unidade, na descontinuidade do que na continuidade, no micro do que no macro, no desvio do que no predominante. O segundo motivo é político. Raramente uma construção teórica repercute imediatamente na sociedade. É o presente que escolhe a teoria que expressa os seus problemas e projetos. E é raro haver uma coincidência entre o vivido e o pensado. O que ainda hoje é atual é a "teoria da dependência" dos anos 70, compatível com o presente da globalização.

B - Parece haver uma divisão entre autores que enaltecem a colonização portuguesa e consideram que o país deve manter suas características de colônia para progredir, e outros que vêem a possibilidade de avanços no país apenas na emancipação...

JC - As interpretações do Brasil não são "idéias desencarnadas", especulações puras, desvinculadas dos interesses econômico-socio-político-culturais dos sujeitos sociais. Elas expressam e organizam tais interesses, direta ou indiretamente. A continuidade do Brasil colonial, dependente, autoritário para dentro e submisso para fora, na linguagem dos conservadores "integrado à prosperidade ocidental" ou "integrado às luzes, à civilização, ao progresso, à ordem democrática", é defendida por interpretações conservadoras. Para estas, os sujeitos do Brasil são o Estado e as elites brancas, europeo-americanizadas, tecnocráticas, aculturadas, vestidas com roupas de outro lugar, cheirando a perfumes de outro lugar e discutindo idéias de outro lugar. Já outros vêem a possibilidade do desenvolvimento interno somente se houver ruptura com a dominação externa, brutal e cruelmente extorsiva. Qual é a novidade de FHC? Colocando de modo rápido e superficial, ele acreditaria no desenvolvimento na dependência. Para ele, não é necessária a ruptura com o externo, para que a sociedade brasileira rompa com o seu doloroso passado. Desenvolvimento depende de capital e tecnologia. Estes vêm do exterior, devendo, portanto, serem estimulados a vir para dentro, gerando empregos, criando infra-estrutura e acelerando o processo interno de desenvolvimento. Aos seus olhos, a dependência não seria o problema, mas, a solução.

B - Vários intelectuais brasileiros afirmam que a conduta de FHC na presidência não condiz com as reflexões contidas na teoria da Interdependência da década de 70. O que o senhor pensa sobre isso?

JC - Posso estar enganado, mas o presidente Fernando Henrique Cardoso tenta praticar exatamente o que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso escreveu em Dependência e Desenvolvimento na América Latina, há 30 anos. É um livro que talvez possa ser lido como o seu programa político de governo. Mas, no poder, a sua teoria que, enquanto pura teoria, poderia ser mais à esquerda, tem-se revelado muito condescendente com as elites vindas do passado colonial e com os interesses do capital internacional. Ele estaria servindo mais à continuidade do que à mudança, sendo mais conservador do que "revolucionário", como prometeu ser.

Os oito autores do pensamento brasileiro

Tudo começou com Varnhagen, um historiador do século 19 quase desconhecido na Academia, mas que manteve um profícuo diálogo com os demais intelectuais escolhidos para compor o livro do professor José Carlos Reis. As idéias de Varnhagen alinhavam-se com as de Gilberto Freyre, mas foram rechaçadas por Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda, Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso. Confira a linha de pensamento de cada autor, segundo o professor Reis.

Varnhagen - Reinou absoluto na historiografia brasileira do século 19. Até hoje sua História Geral do Brasil impregna os livros didáticos. Ele criou uma identidade brasileira superautoritária e fechada, que recusa a miscigenação, lamenta a presença do negro, opta pelos valores ocidentais e pelo cristianismo e reserva ao Estado - que, para ele, coincidia com a figura do Imperador - a exclusividade na criação e ação políticas. A identidade brasileira começou com a exclusão violenta da população brasileira.

Freyre - Embora alinhado com Varnhagen e o mundo luso-brasileiro das elites, valoriza a presença negra e a miscigenação como expressão de uma democracia racial, cultural e política.

Capistrano - Romperá radicalmente com Varnhagen, valorizando a presença do indígena e do mameluco na identidade brasileira.

Sérgio Buarque _ Oponente ferrenho da herança cultural ibérica, marcada pelo culto à personalidade, incapacidade de associação para a busca de objetivos comuns, o bovarismo social e cultural, a preferência política por caudilhos, a ausência de planejamento, o aventureirismo, a não-separação do público e do privado, Holanda propõe uma "boa ruptura" com o passado colonial, uma vertical revolução que integre toda a população brasileira à cidadania.

Sodré - Ligado ao PCB, deseja concretizar essa integração proposta por Sérgio Buarque. Ele integra à identidade brasileira o proletariado e o campesinato e, claro, no interior dessas classes sociais revolucionárias, negros, índios e miscigenados, sem exclusões.

Caio Prado - Integrando os mesmos sujeitos históricos à identidade brasileira, procura reconstruir o sonho que não deu certo em Sodré. Repensa as possibilidades de uma "revolução brasileira" dialogando vigorosamente com os seus parceiros do PCB.

Florestan e FHC - Desejando o mesmo que Capistrano, Holanda, Sodré e Caio Prado, começam a analisar a realidade brasileira, agora, como "cientistas sociais", para encontrar os melhores meios para realizar este projeto. Florestan é mais impaciente, quer uma mudança mais rápida, uma ruptura mais radical com o passado. Fernando Henrique prefere negociar e dialogar com os adversários. Ele aposta tanto nisso que, para muitos críticos, está mais para um cúmplice das elites do que para um aliado da população brasileira.