Os descendentes de Helena Antipoff
Regina Helena de Freitas Campos
No ano passado, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) instituiu o Prêmio monográfico Helena Antipoff, com o tema: Psicologia e compromisso social: educação inclusiva desafios, limites e perspectivas. Profissionais e estudantes de Psicologia de todo o país apresentaram monografias relacionadas ao tema, focalizando as diferentes abordagens psicológicas e psicossociais relacionadas ao acesso de populações excluídas ou marginais à educação. Os melhores trabalhos foram escolhidos por uma comissão de especialistas, designada pelo CFP e da qual fiz parte, representando a UFMG. A reunião de julgamento foi realizada na Sala Helena Antipoff, na Biblioteca Universitária da UFMG, local onde parte do acervo da psicóloga e educadora homenageada pelo Prêmio está sendo recuperado, conservado e disponibilizado para a pesquisa em história da Psicologia e da Educação no Brasil. A cerimônia simbólica de premiação foi realizada durante o XIX Encontro Anual Helena Antipoff, na Fundação Helena Antipoff, em Ibirité, em maio. Promovido pelo Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff, o encontro teve por objetivo divulgar os trabalhos premiados e estimular a discussão da proposta da Educação inclusiva, e do papel dos psicólogos em sua implementação.
A Educação inclusiva focaliza, mais uma vez, o direito universal à educação, consagrado na Constituição Brasileira e nas cartas internacionais de direitos do homem. Por que reafirmar esse direito, no âmbito da teoria e da prática em Psicologia, se no plano jurídico já há consenso sobre sua pertinência? Talvez exatamente porque, muitas vezes, a sua realização, embora afirmada do ponto do vista estritamente formal, é negada na prática a determinados grupos sociais populações excluídas, meninos de rua, minorias étnicas, portadores de deficiência física e mental nas próprias instituições encarregadas de torná-la real. Por isso a análise psicológica ou psicossocial do efetivo exercício do direito torna-se necessária, e a lembrança da obra de Helena Antipoff é oportuna: seu trabalho, em suas diversas vertentes, expressa o ideal do respeito aos direitos da criança, através de iniciativas para torná-lo efetivo.
Ao chegar a Belo Horizonte, em 1929, deixando para trás a dura experiência da guerra, do totalitarismo e do fascismo na Europa, Antipoff sabia o que significava a luta pelo respeito aos direitos do homem e, em especial, da criança. Em Genebra, no final da década de 1920, havia participado das ações do Bureau International de Sécours aux Enfants, instituição que propusera à Sociedade das Nações, em 1924, a assinatura da primeira declaração universal dos direitos da criança, a famosa Declaração de Genebra.
Ao observar, em Belo Horizonte, os pequenos vendedores de jornais dormindo nas ruas, Antipoff não entendia como aquela cidade pacífica, de tanta beleza natural, permitia aquele espetáculo de miséria. Por que, se o Brasil sequer conhecera a guerra? Voltou-se, então, para ações de cuidado para com as populações excluídas. Buscava exatamente os meios de beneficiar os excepcionais, as crianças abandonadas e os alunos que fracassavam nas escolas públicas locais, por falta de estímulo familiar, cultural, ou mesmo pela condição precária de vida.
Hoje, é fácil entender o raciocínio de Antipoff. O fenômeno que observou há mais de sete décadas continua a se repetir, tendo, inclusive, ganhado cores ainda mais dramáticas. Assim, o prêmio instituído pelo CFP em sua memória focaliza justamente o tema da Educação inclusiva, e incentiva-nos a repensá-lo na atualidade. Foram premiados os trabalhos de Tânia Aparecida Ferreira, professora no Unicentro Newton Paiva, de Belo Horizonte (Os meninos e a rua o psicólogo e os impasses da assistência), Luciana Bicalho Cavanellas, formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Psicologia e compromisso social); Erika Lourenço, mestranda em Psicologia Social pela UFMG (Educação inclusiva: uma contribuição da história da Psicologia), Luiz Fernando Belmonte Mena, da Universidade de São Paulo (A inclusão simbólica), Gerson Alves da Silva Júnior, da Universidade Federal de Alagoas (Educação inclusiva e diferenciada indígena), Juliana da Silva Costa, estudante de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Educação inclusiva e orientação sexual: dá para combinar), e Paulo Wenderson Teixeira de Moraes, estudante na Universidade Federal da Bahia (Educação a partir de uma perspectiva etnográfica).
Todos esses trabalhos têm em comum o fato de, utilizando diferentes perspectivas teóricas em Psicologia, tratarem os processos de exclusão a partir de uma visão humanista. São exemplos da perspectiva defendida por Ana Mercês Bahia Bock, em sua gestão à frente do Conselho Federal de Psicologia: a associação entre um conhecimento amplo da história dessa área no país a ações objetivas, visando expandir e aprofundar entre nós a consciência da necessidade de pôr a Psicologia a serviço da superação de nossa enorme dívida social. A presidente do CFP afirmou aos premiados: "Nós, psicólogos, não queremos ter, na história, o papel que temos tido. Criamos instrumentos adequados e preciosos para justificar a desigualdade escolar, que, na verdade, é desigualdade social. Desenvolvemos técnicas eficazes de diagnóstico das chamadas dificuldades de aprendizagem, pensadas como um processo que acontece principalmente com crianças pobres, que possuem famílias pouco intelectualizadas ou analfabetas, que, ao se depararem com os conteúdos da cultura escolar, não conseguem ou se recusam a aprender. Queremos romper com essa cumplicidade. (...) Nós, psicólogos, queremos estar do outro lado. Queremos exercer a profissão com outro tipo de compromisso social. Queremos ser descendentes de Helena Antipoff!"