Horizontes menos planos

Confluência de saberes

Estudantes indígenas estimulam integração da medicina tradicional com a ocidental

O Programa de Vagas Suplementares para Estudantes Indígenas mantido pela UFMG está estimulando, em sala de aula, a integração da medicina convencional com aquela praticada pelos povos indígenas. Três estudantes indígenas já se graduaram na Faculdade de Medicina, uma está em curso e outros dois devem iniciar seus estudos neste semestre. Fora das salas, a meta é fortalecer redes de colaboração para que esse intercâmbio seja feito por “plataformas de tradução do conhecimento”, expressão usada para identificar as equipes de especialistas que transformam evidência científica em políticas públicas. 

Foi com esse propósito que o professor Ulysses Panisset, do Departamento de Medicina Preventiva e Social, desembarcou no Canadá, em dezembro passado. Ele participou de evento promovido pela Escola de Saúde Pública da Universidade de Alberta. O objetivo foi discutir as melhores formas de integrar o conhecimento obtido por meio de métodos científicos ao conhecimento tácito, que vem da sabedoria de vida dos povos indígenas.

“No Canadá, existe o entendimento de que ‘as primeiras  nações’, como chamam os povos indígenas, têm direitos adquiridos e conhecimentos que podem beneficiar toda a sociedade”, enfatiza o professor. No Brasil, no entanto, a perspectiva é outra. 

“O preconceito e a ignorância sobre a riqueza da nossa cultura indígena são uma barreira para o reconhecimento da influência desses povos e têm de ser combatidos com medidas práticas, como o programa de inclusão da UFMG”, alerta o professor Panisset.

Política de inclusão
Lançado em 2009, o Programa de Vagas Suplementares para Estudantes Indígenas tornou-se permanente em 2016. A estudante Adana Kambeba, do 11º período da Faculdade de Medicina, foi aprovada em vestibular específico para povos indígenas e pretende associar os conhecimentos da medicina tradicional aos da científica.

Adana Kambeba: acesso ao conhecimento tradicional pela voz indígena.
Adana Kambeba: acesso ao conhecimento tradicional pela voz indígenaCarol Morena / Faculdade de Medicina

 “O curare, por exemplo, é uma planta usada pelos indígenas durante a caça e exerce ação paralisadora. Nos hospitais, o curare é utilizado como anestésico durante as cirurgias, por ser um bloqueador neuromuscular”, explica Adana.

Também convidada a participar do evento na Universidade de Alberta, no Canadá, ela levou o conhecimento medicinal de povos da região amazônica e de redes indígenas de outras partes do Brasil. Segundo Adana, o encontro foi importante para conhecer e ouvir outros “parentes” indígenas, ou irmãos, forma como os povos indígenas de todo o mundo se denominam.

Convivência
Para o professor Ulysses Panisset, a convivência com os estudantes indígenas cria um ambiente de aprendizado mutuamente privilegiado. “A maior contribuição é o ensino e a prática do amor à natureza e proteção de ecossistemas delicados. É preciso entender que a sabedoria milenar acumulada por esses povos pode beneficiar as suas vidas e a de outros brasileiros”, comenta.

De acordo com o professor, o uso sustentável dos extratos medicinais, que são exaustivamente pesquisados dentro e fora do país, é um exemplo de sabedoria que deve ser aprendida com a população indígena. “Existe muita cobiça internacional pelos extratos medicinais da Amazônia, por exemplo. Nossa diversidade é ainda gigantesca”, completa.

Adana Kambeba também vê com bons olhos a convivência entre os estudantes de diferentes etnias. “Muitas pessoas não têm acesso ao conhecimento dos povos indígenas e passam a tê-lo por meio da nossa voz, sem mediação, e dos nossos comportamentos e posturas. Alguns professores e alunos até nos agradecem por compartilharmos um pouco da nossa cultura. Temos muito a contribuir”, ressalta.

Caminho de volta
O estilo de vida moderno cria hábitos alimentares inadequados, que podem resultar no desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, hipertensão e enfermidades do coração. Segundo a Organização Mundial da Saúde, mais de 15 milhões de pessoas com idade entre 30 e 70 anos morrem todos os anos em decorrência dessas doenças, que já afetam a população indígena.  No Brasil, o Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígena mostra crescimento das doenças não transmissíveis, principalmente nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste, onde o sobrepeso e a obesidade já atingem mais de 50% das mulheres.

Para Adana, é preciso fazer o “caminho da volta às origens”, o que passa pela alimentação. “A nossa alimentação, no geral, é muito variada e saudável. Mas temos deixado a comida industrializada ganhar espaço no nosso dia a dia. Povos indígenas de continentes longínquos, de línguas, culturas, conhecimentos e tradições diferentes têm compartilhado os mesmos problemas de saúde. Precisamos pensar no caminho de volta para a origem da nossa alimentação e resgatar o modo como os nossos avós, bisavós e os mais antigos se alimentavam”, frisa a estudante.

De acordo com ela, o embasamento científico é essencial para o fortalecimento de políticas públicas. “Os pesquisadores indígenas trabalham para que, dentro dos padrões científicos, seja possível traçar estratégias que poderão ser aplicadas aos povos de diferentes regiões do país e do mundo”, conclui Adana Kambeba.

Karla Scarmigliat / Jornalista do Centro de Comunicação Social da Faculdade de Medicina