O mês que não vai terminar
Por meio da análise de postagens no Facebook, pesquisadores mapeiam disputas discursivas sobre as manifestações de junho de 2013 no Brasil e na Turquia
Em junho de 2013, quase que simultaneamente ao que ocorria no Brasil, os turcos também saíam às ruas para protestar contra o governo. Enquanto no Brasil o que motivava as manifestações era o aumento das passagens do transporte urbano, na Turquia, os protestos eram contra a decisão do governo de demolir o Parque Taksim Gezi, em Istambul, para a construção de um shopping e um complexo residencial – nos dois países, tudo era reportado e também pautado, em tempo real, pelas redes sociais. Interessado na proximidade temporal e temática dos dois casos, um grupo de pesquisadores da UFMG e de universidades australianas, analisou-os conjuntamente para tentar esclarecer o papel das mídias sociais no contexto das lutas simbólicas inerentes a essas manifestações populares.
Liderados por Ricardo Fabrino Mendonça, professor de Ciência Política da UFMG, os pesquisadores dedicaram-se à análise dos protestos à luz do conceito de “acontecimento”, associado a “a rupturas nos fluxos ordinários da vida” que “deslocam as construções dominantes da realidade e abrem novas maneiras de vê-la e interpretá-la”. Explicam os pesquisadores: “os acontecimentos moldam a maneira como o passado é entendido e o futuro é imaginado. Eles não são ocorrências estáticas com princípios e finais claros: evoluem e sempre têm o potencial de ser atualizados em diferentes momentos e locais do futuro”.
O resultado da pesquisa foi coligido no artigo Protestos como “Acontecimentos”: as lutas simbólicas nas manifestações de 2013 no Brasil e na Turquia, publicado há algumas semanas na Revista de Sociologia e Política, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
No artigo, os pesquisadores analisaram as mensagens postadas no Facebook ao longo dos primeiros 30 dias de protestos em cada país. No Brasil, foram coletadas as publicações da página Passe Livre São Paulo, vinculada ao Movimento Passe Livre (MPL), grupo que iniciou os protestos, e da página O Gigante Acordou, que emergiu durante as manifestações.
No caso turco, foram coletadas as postagens das páginas Taksim Dayanismasi, associação que teve papel significativo na organização e mobilização das manifestações, e Recep Tayyip Erdogan, pró-governo. Em todas essas postagens, os pesquisadores analisaram a forma como seus autores enquadravam as causas das manifestações e como esses enquadramentos foram mudando ao longo dos dias.
A análise revelou mudanças significativas na forma o modo como as causas dos protestos foram enquadradas nos dois países. Enquanto no Brasil a transformação ocorreu de forma a enfraquecer o foco inicial, em uma espécie de sequestro ideológico das manifestações, na Turquia essa transformação não implicou rompimento com a pauta inicial, mas sua ampliação: os protestos contra a demolição do Parque Taksim Gezi, marco zero das manifestações, passaram a atacar também a natureza autoritária do regime. “Na Turquia, aqueles que iniciaram e organizaram os protestos foram também os que tentaram ampliar os quadros interpretativos que definiam as suas causas. Eles, deliberadamente, buscaram uma extensão da estrutura, capaz de expandir os limites da luta para abranger diferentes visões e envolver diversos grupos”, anotaram os pesquisadores.
Movimento e dissolução
No Brasil, ao mesmo tempo que os protestos tomavam as ruas, uma intensa disputa pela determinação dos significados e das razões daquelas manifestações ocorria no campo simbólico. A questão do transporte público e de suas tarifas, levada às ruas e à internet pelo MPL, seguiu hegemônica até 13 de junho. Nessa data, contudo, em razão do recrudescimento da repressão estatal, o tópico “violência policial” começou a ganhar força como explicação para os protestos, e em 17 de junho, na esteira dessa expansão discursiva, surgiu a página O Gigante Acordou, ocorrência decisiva para a inflexão que ocorreria a seguir.
“Em 17 de junho, os posts da OGA começaram a promover uma explicação muito diferente dos protestos, convidando as pessoas a lutar contra a corrupção e os atores políticos, o sistema político existente”, escrevem os pesquisadores. “Suas postagens eram muito mais frequentemente baseadas em imagens e, na maioria dos casos, não eram desenvolvidas com argumentos mais amplos”, explicam. Nesse momento, surge o slogan “Não é por 20 centavos.”
Enquanto no Brasil a transformação ocorreu de forma a enfraquecer o foco inicial, em uma espécie de sequestro ideológico das manifestações, na Turquia essa transformação não implicou rompimento com a pauta inicial, mas sua ampliação.
Não demorou para que a OGA entrasse em confronto direto com o MPL, que parecia prever o potencial desse redirecionamento interpretativo dos protestos em esterilizar qualquer chance de funcionalidade pragmática no que se refere à conquista efetiva de ganhos sociais. À medida que o MPL se distanciava desse discurso antipartidário difuso, a OGA aproveitava o momento para ganhar protagonismo no âmbito da construção de sentidos para os protestos.
Observando-se retrospectivamente, o artigo faz perceber o atual momento brasileiro como uma espécie de “resultado por pontos” de todos os rounds simbólicos disputados no decorrer daquele mês. Como escrevem os pesquisadores, enquanto na Turquia a ampliação das razões dos protestos fora essencial para “desafiar o autoritarismo e promover ideais democráticos”, no Brasil, essa extensão dos quadros “enfraqueceu o foco inicial dos manifestantes” e, no limite, “pôs em risco a democracia”.