De flor em flor

Pela sobrevivência

Grupos do ICB investigam relações das abelhas com as plantas, o ambiente e os agrotóxicos; um dos objetivos é contribuir para frear o processo de extinção

Há cerca de dez anos, o professor Fernando Amaral Silveira, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB), descobriu, na Serra da Mantiqueira, em Minas, uma nova espécie de abelha, a Actenosigyne mantiqueirensis. Havia, até então, apenas outra espécie desse gênero conhecida, a Actenosigyne fulvoniger, endêmica no Brasil e encontrada no sul do país. Mais tarde, uma terceira espécie, ainda não nomeada, foi descoberta no Parque do Itatiaia, estado do Rio de Janeiro. Como podem os insetos desse gênero estar no Sul e em Minas, sem que haja sinal deles em São Paulo e na maior parte do território fluminense? Isso tem a ver, segundo Silveira, com os ciclos de glaciação: longos períodos de temperaturas baixas possibilitaram a migração de plantas como a araucária para regiões altas no Sudeste. Parte da fauna, naturalmente, seguiu esse movimento. Quando as temperaturas voltaram a aumentar, as florestas sobreviveram apenas nos topos de montanha, com clima mais frio. Isoladas, as abelhas podem se diferenciar, dando origem a novas espécies. 

Os pesquisadores usam dados morfológicos e moleculares para descobrir relações filogenéticas entre espécies e gêneros. Esse tipo de conhecimento sobre o passado é crucial em tempo de mudanças climáticas. “Sabemos que, em futuro próximo, as temperaturas médias estarão mais altas, as chuvas serão mais concentradas, e as secas, mais longas. Florestas adaptadas a ambientes frescos e úmidos tendem a se extinguir em áreas mais baixas. E eventos como esse terão impacto forte sobre as populações de abelhas”, diz o professor.

Um dos responsáveis pelo Laboratório de Sistemática de Insetos, Fernando Silveira tem trabalhado, também, com abelhas ameaçadas de extinção, sempre em associação com o meio ambiente. As pesquisas procuram entender aspectos como a flutuação da abundância e da riqueza de espécies desses insetos.

Sem ninho e sem alimento

De acordo com Silveira, a preocupação com a extinção das abelhas remonta a décadas atrás, mas a abordagem do assunto enfrenta resistências. “As empresas fabricantes de pesticidas admitem problemas com seus produtos, prometem minorá-los e até parecem agir pela conservação, mas o quadro, na prática, é de inércia. E não há qualquer dúvida da forte participação dos pesticidas na redução de populações de abelhas, assim como de outros animais e de plantas”, comenta o entomologista. Ele acrescenta que, em outra frente de resistência, os produtores rurais se apegam a práticas tradicionais, com o suporte das empresas de defensivos agrícolas, deixando de considerar práticas alternativas ambientalmente mais seguras.

Fernando Silveira lembra que, no início da década de 2010, as taxas de mortalidade de abelhas cresceram tremendamente, na natureza e nos apiários, em razão da combinação de fatores como uma nova geração de pesticidas e a expansão das áreas de agricultura, com a consequente redução de vegetação nativa. “Com o aumento da área dos campos cultivados, as abelhas que nidificam no solo ficam sem locais para essa finalidade, e ninhos são destruídos no processo mecanizado de cultivo. Além disso, reduzem-se as plantas que lhes fornecem alimento”, explica.

A produção de mel, própolis e geleia real é a tarefa mais imediatamente associada às abelhas, mas elas também são responsáveis pela polinização (fecundação) de plantas cultivadas e de plantas nativas, colaborando, assim, para a manutenção dos ambientes naturais. O desaparecimento das abelhas interfere nos ciclos de reprodução das plantas e pode levar à queda vertiginosa na produção de determinados alimentos. Nos ambientes naturais, a falta de frutas e sementes para macacos, aves, roedores e outros animais altera o funcionamento das cadeias alimentares.

A produção de mel, própolis e geleia real é a tarefa mais imediatamente associada às abelhas, mas elas também são responsáveis pela polinização (fecundação) de plantas cultivadas e de plantas nativas, colaborando, assim, para a manutenção dos ambientes naturais.

Chaves taxonômicas

Fernando Silveira e equipe têm trabalhado na catalogação e classificação de abelhas, o que inclui a construção de chaves taxonômicas, ferramentas que possibilitam a identificação dos seres vivos. Esse trabalho vai resultar na segunda edição atualizada do livro Abelhas brasileiras – sistemática e identificação, publicado pela primeira vez em 2002, que contém chaves para gêneros e subgêneros. A nova edição, diz Silveira (autor do primeiro volume, em parceria com Gabriel Melo e Eduardo Almeida) vai oferecer os caminhos para identificação até o nível de espécies. 

“Há quase 20 anos, listamos 1.670 espécies presentes no Brasil, e a estimativa era de que houvesse, então, ao menos três mil. Calculamos que a compilação de descobertas dos últimos anos aumente o número de espécies conhecidas para duas mil ou mais”, anuncia Fernando Silveira, acrescentando que a publicação da primeira edição do livro incentivou muitos pesquisadores a dedicar-se à classificação, o que gerou acúmulo significativo de informações.

Outra vertente do trabalho realizado no Laboratório de Sistemática de Insetos é a da reconstrução da história evolutiva e da distribuição geográfica das espécies. Dispor dessas informações, afirma o pesquisador, possibilita saber, por exemplo, que espécies compartilham ancestrais mais próximos, o que serve de base para propostas de classificação. “O inventário da fauna também localiza as espécies por região e determina associação com os diferentes tipos de vegetação”, complementa o professor.

Segundo Fernando Silveira, conhecer as abelhas é fundamental para a segurança alimentar em todo o mundo. “Um terço do alimento consumido hoje depende direta ou indiretamente da participação das abelhas. Sem elas, a castanha-do-pará, por exemplo, não produz frutos, e o trevo, uma das plantas usadas para a forragem do gado bovino, não existiria”. 

Pesquisadores do ICB estudam cactos ameaçados de extinção na Serra do Sudeste, em Caçapava do Sul (RS). Eles marcam indivíduos do cacto Parodia crassigibba
Pesquisadores estudam cactos ameaçados na Serra do Sudeste, em Caçapava do Sul (RS). Eles marcam indivíduos do cacto 'Parodia crassigibba'Clemens Schlindwein / UFMG

Em 2018, segundo o Relatório sobre Polinização, Polinizadores e Produção de Alimentos no Brasil, o valor econômico do serviço ecossistêmico de polinização para a produção alimentar no país foi estimado em R$ 43 bilhões. O dado foi obtido com base no conhecimento de 67 plantas, cultivadas ou silvestres, envolvidas direta ou indiretamente na produção de alimentos. Cerca de 80% dessa quantia está vinculada aos cultivos de soja, café, laranja e maçã. De acordo com o documento, foram registrados como visitantes florais 609 espécies de animais, 41% delas (249) com potencial de polinização. As abelhas são os principais polinizadores agrícolas: 165 espécies (66,3% do total) prestam esse serviço. O número é certamente muito maior, mas ainda não há estudos suficientes sobre o comportamento de grande número de espécies.

A saga de Bombus

No Instituto de Ciências Biológicas, professores e grupos de pesquisa atuam em várias frentes nos estudos sobre abelhas. Residente de pós-doutorado no Laboratório de Biodiversidade e Evolução Molecular, José Eustáquio dos Santos Jr. integra equipe que atua na coleta e descrição de espécies em unidades de conservação da Mata Atlântica, com o objetivo, entre outros, de identificar quais estão ameaçadas e o seu grau de vulnerabilidade. 

Segundo José Eustáquio, listas como as que são geradas por estudos de campo subsidiam decisões sobre as espécies que devem ser protegidas, metas e planos de ação de alcance nacional, assim como a criação de áreas de conservação. Ele acrescenta que o trabalho se justifica também pela necessidade de novos registros. “Nosso conhecimento sobre invertebrados é escasso. No caso das abelhas, desconhecemos o número real de espécies existentes no Brasil, e a cada dia novas espécies são descobertas”, afirma.

Em sua tese de doutorado, defendida em 2017 na UFMG, José Eustáquio descreveu a espécie Bombus bahiensis, que ele descobriu ainda no mestrado. Sua área de distribuição está compreendida entre o norte do Espírito Santo e o sul da Bahia. Ela se distingue ligeiramente da Bombus brasiliensis, encontrada desde o Espírito Santo até o extremo sul do Brasil e também em países como Argentina, Paraguai e Uruguai. Alguns anos depois dos primeiros achados de Bombus bahiensis, Eustáquio e companheiros de pesquisa constataram que a espécie teve reduzida sua área de distribuição, possivelmente restrita agora à cidade baiana de Ilhéus e regiões adjacentes. Bombus bahiensis corre o risco de extinção.

“Chegamos a essa conclusão por meio de novas coletas, consultas a coleções, estudos genéticos e observação das mudanças climáticas”, comenta Eustáquio, autor de artigo, publicado já em 2019, que chama a atenção para o risco de desaparecimento da espécie. O alerta pode levar à inclusão da Bombus bahiensis numa lista de espécies ameaçadas, após avaliação de comitê formado por técnicos do governo, pesquisadores e gestores ambientais. O cruzamento de uma série de coordenadas, dados ambientais e modelos climáticos possibilita formular hipóteses sobre outros locais onde a espécie pode ocorrer, embora, segundo Eustáquio, nem sempre esses nichos sejam usados pelos animais, em razão, por exemplo, de barreiras geográficas e interações com outras espécies.

Também nas pesquisas do doutorado, José Eustáquio utilizou dados genéticos e geográficos para estimar como e quando ocorreu a chegada das espécies do gênero Bombus na Região Neotropical, que se estende do sul do México às terras no extremo sul da América do Sul. Ele informa que há registro de 270 espécies do gênero no mundo, oito delas no Brasil, e ressalta que, para que se entenda como as espécies chegaram ao Brasil, “é preciso viajar milhões de anos no passado. As espécies brasileiras de Bombus chegaram aqui antes da entrada do homem nas Américas”.

Espécimes de abelhas do Centro de Coleções Taxonômicas da UFMG
Espécimes de abelhas do Centro de Coleções Taxonômicas da UFMG Foca Lisboa | UFMG

As descobertas que tiveram participação de José Eustáquio resultaram de milhares de horas de pesquisa de campo, de 2009 a 2018. Em 2015, com os professores Fernando Amaral da Silveira e Fabrício Rodrigues dos Santos, ele publicou artigo em que a espécie foi descrita. O artigo de 2019 é assinado também, além de Silveira e Santos, por Ubirajara de Oliveira, pesquisador do Instituto de Geociências, e Caio Augusto Rocha Dias, ex-doutorando do ICB.

Itamar Rigueira Jr.